quarta-feira, 13 de junho de 2012

Casa dos Bicos: a derradeira nódoa de Saramago, em Lisboa


Dedicado aos meus alunos e amigos da E.S.A.D., onde, ao longo de tantos anos, temos. metodicamente, discutido e dissecado este tema


A função da Literatura, no  contexto da Cultura Humana é demasiado complexa, para que se possa reduzir a duas linhas. A Escrita, enquanto metáfora da comunicação, ocupa um patamar subtil, tal como a moeda, enquanto inefável mediadora de categorias do apreço inquantificável, ou, por palavras mais simples, como possibilidade de forçar uma confrontação entre dois termos, que, à partida, não poderíamos comparar, através de um mediador palpável, que, elementarmente, os torna em quantidades mensuráveis.

Tudo começa com a noite dos tempos, em que o redor hipnótico das sociedades humanas era gerido pela magia da Palavra. Porque a Palavra é uma flexão sonora, que nunca se libertou completamente da Música, o que, implicitamente, a leva a comportar sinestesias com a própria Dança, ou seja, a envolver, no seu Signo, simultaneamente, todos os sentidos do homo aestethicus.

A musicalidade de grandes poetas, como Camões, há muitos séculos que levou a Língua Portuguesa, ao extremo da flexão perfecionista, a que alguma vez poderia aspirar. Todavia, a Literatura é uma história sem fim, e o correr dos tempos nunca será necessariamente homogéneo, bem pelo contrário, ir-se-á revestindo de períodos de abundância e escassez. Como Cesariny disse, numa célebre entrevista, nunca pode ascender acima da "mediania", porque, quando, no seu tempo, olhava para cima, todos os horizontes eram vazios, ou insuficientes, ou seja, ele era sistematicamente forçado a ser o maior acima de si próprio, o que, para além de tautológico, conduziu, por inerência, às formas mais solitárias da criação.

O séc. XX português, com a distância que uma década, agora, nos permite, não é, decididamente, um século de prosadores, mas está recheado de uma miríade de vozes líricas, e, mesmo, épicas, no caso exemplar de alguns textos do heterónimo Álvaro de Campos. Para mim, frequentador das horas tardias das páginas grandiosas de todas as vozes do Mundo, e, enquanto sibarita, e formador de gerações, no campo inefável da Estética, onde o juízo de valor aspira à ordenação absoluta dos objetos da Arte, no cenário do Tempo, e tem, por cautela, de ser emitido com a maior ponderação, qualquer palavra pesa, em demasia.

A sociologia do Nobel, muito mais no âmbito da Sociologia do Tempo e da transitoriedade do que do juízo estético, terá um dia, os seus analistas próprios, quando a gaveta do Grande Escultor mostrar a estatística da irrelevância, e colocar, em palco, a fragilidade das coisas apressadas. De entre as categorias do Nobel, talvez a mais discutível, seja a da Literatura, como poderemos confirmar na listagem dos prémios atribuídos, desde a sua instituição: pateticamente, não é mais do que uma longa lista de ventos e poeiras, da qual poderemos retirar alguns punhados, e nada mais, nem nada menos.

A questão do gosto do leitor é pessoalíssima; a do escritor, como é o meu caso, é ainda mais íntima. Como Borges afirmava, cada um de nós constrói a sua genealogia mítica, feita de fragmentos inexplicáveis e secretos, sempre com a certeza de que o que escolhemos nos fez, um dia, correr o sangue mais depressa nas veias, e nos levou à tentação de o... ultrapassar. Só a vol d'oiseau, lembrando longas e permanentes conversas, eu nunca poderia ter existido sem Li-Bai, sem Sade, sem Voltaire, sem Proust, sem Artaud, sem Pound, sem Joyce, Paz e Pessoa, assim, num curto apanhado breve, terem, antes de mim, existido.

Alegra-me que haja um Português, nesta minha linhagem mítica, tal como gostaria de que Pessoa, essa sombra de todas as escritas, e esse exemplo do homem plural e universal, pudesse ter recebido o Nobel da Literatura. Nenhum outro dos nossos criadores melhor o teria merecido, findo que foi o séc. XX, depois de longos séculos de exercício da Língua, nos seus mais elevados patamares, desde a malícia das cantigas de escárnio e mal dizer, passando pela épica da ironia, que é Fernão Lopes, do chocalhar satírico de Gil Vicente, e, por Camões, e, de aí para a frente, sempre às costas de gigantes, até chegar ao tempo da nossa contemporaneidade, e do seu triste esvaziamento. Como Oscar Wilde dizia, em Arte, não há boa intenções, ou há Arte, ou as boas intenções não servem para coisa nenhuma, a não ser para ocupar espaço e desperdiçar tempo. Goethe, outro dos titãs, aconselhava-nos a não olhar senão para as coisas excelentes, relembrando que somos uma finita poeira de estrelas, levada pela primeira brisa dos ventos de amanhã, e que o tempo constantemente se esvai.

Para um escritor, é grave que uma distinção, cuja presunção aspira ao universal, tenha sonhado com resumir o glorioso campo da criação linguística portuguesa a um epifenómeno do séc. XX, um escrevinhador menor, de nome José Saramago. Já noutros lugares abordei o tema, e não me apetece repeti-lo. Como disse, o tempo é escasso e a obra extensa: por mim, na meia hora em que escrevi estas linhas já se consumou uma enormidade de segundos, desperdiçada com alguém que o Futuro não recordará, mas a nossa função de criadores, enquanto sensores do sensível da sensibilidade do nosso tempo, é igualmente a de ajudar a organizar os pilares dos juízos dos séculos a vir, e, por isso, continuo, do mesmo modo que um dia desperdicei a minha mortalidade a rabiscar o texto mais violento, que alguma vez produzimos, contra a figura saramaga.

Num dos seus maravilhosos e sintéticos pequenos contos, Borges, um não Nobel do séc. XX, elogia um certo poema, como sendo um testemunho possível da reconstrução de toda a literatura irlandesa, se, por ato aziago, omen absit, ela, um dia se perdesse toda. De Saramago, com toda a menoridade que lhe está associada, não poderíamos reconstruir, em nenhuma linha, em nenhuma página, em nenhuma obra, todo o espantoso património de criação que foram os séculos de flexão do nosso falar português.

Ninguém, no seu perfeito juízo, poderia ensinar as estruturas de ser eloquente, em Português, em qualquer das suas páginas.

Se, porventura, tivéssemos de ensinar a um leigo os íntimos prazeres da leitura, só com o esforço do fracasso certo poderíamos utilizar qualquer saramago, como cartilha.


O que de mais glorioso existe em qualquer criador é o podermos identificar as suas diferentes "maneiras", ou seja, o modo como a sua estátua interior amadurece o seu percurso. Em Saramago, a maneira é a mera repetição de um tique, que apenas se vai tornando mais amargo, com a impossibilidade de se renovar, e inovar.

Quando, com Fernão Lopes, percebemos que há uma língua autónoma a emergir, daquela ambiguidade do romance da sonoridade linguística peninsular, estamos a reconhecer a um dos nossos gloriosos antepassados o que é, talvez, o papel mais guerreiro e subtil de um escritor: o de fixar a Língua em que escreve, simultaneamente, dando-lhe alicerces, e forçando as fronteiras, para poder deixar em aberto, aos que depois dele virão, todas as possibilidades de a tornar ainda mais vasta, poderosa e flexível. Glorioso Camões, que o percebeu tão bem, magnífico Cesário, que a modernizou, ctónico Pascoaes, que a fez regressar a todas as imperfeições e energias da Magia; espantoso Pessoa, que acreditou em que ela seria grande; transparente Eugénio, que a voltou a tornar caseira, como uma suave brisa de ar; solitário Herberto, que nos relembrou que a Língua é um instrumento de percussão, que nos permite lapidar, para sempre, todos os instrumentos de ónix do nosso falar.

O Norte, cuja ignorância das vozes do Mar e do Sol, como a nossa, era, e é, imensa, decidiu que nada disso era relevante, e, num tempo de burocracias, preferiu folhear uma revista de publicidade, onde uma mente menor e ambiciosa, Pilar del Rio, tinha pago uma página inteira de propaganda, para vender um produto duvidoso, que ela resolvera revestir de relevância. Como toda a História da Arte ensina, e o cavalo de batalha da Estética sintetiza, não há relevância artificial que o devorar do Tempo não vença. A chuva, o sol e vento acabam sempre por arrancar os melhores cartazes, das paredes onde os colaram.

Saramago falhou em tudo: foi irrelevante, enquanto ser humano; pela sua intolerância, pernicioso, enquanto ser social; pela sua menoridade, rapidamente olvidável, enquanto escritor; pelos seus comportamentos, não patriota, enquanto nado nas terras da Lusitânia; pela sua avareza, ridículo, na esquizofrenia da ideologia e das práticas que praticava; pela sua vaidade, em nada exemplar, enquanto figura da Criação Mundial.

Voltando a Dante, cuja recuperação das categorias de validação medievais continuam grandiosas, literalmente, Saramago escrevia mal, e era impossível ensinar um jovem a redigir, através do que ele imprimiu, e imprimiu muito, demais, demasiado; no sentido moral, nada existe que possa ser considerado exemplar na sua obra: defendeu, friamente, o crime, a perseguição, a intolerância, e as sociedades onde o ser humano foi coagido e se pode tornar cada vez mais infeliz; alegoricamente, havia sempre um fundo de mau neorealismo, fora de época, a pairar nos seus claustrofóbicos paraísos artificiais; anagogicamente, a sua Jerusalém Celeste falhou: é agora um lugar de morte e deserção, onde figuras, como ele, arrastam o penar de existências fracassadas.

Com a atribuição da exótica Casa dos Bicos, testemunho de alguns dos nossos tempos mais áureos, e do nosso ser barroco, a um lugar de propaganda de um mau caráter, um mau português e um mau escritor, Lisboa é hoje, mais uma vez, afrontada: Saramago nunca deveria ter ido mais além da sua pequena Azinhaga, onde a Erva Saramaga era atavicamente considerada aziaga, ou de Lanzarote, onde tentou ser Castelhano, numa Literatura, que, por de tão grande como a nossa, também não lhe reservou qualquer lugar.



Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas

2 Responses so far.

  1. Espantoso, como o tempo passa.
    Justamente em junho, "O Laramago" faz, este ano... 20 anos.
    Tornou-se respeitável :-)

    http://issuu.com/heliogabalus/docs/laramago

  2. Continuará a envergonhar os programas do Ensino do Português, até quando?

 
 

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