domingo, 13 de dezembro de 2015

a memória é um retrato de senhora enquanto peixe

Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas

The beacon de Maggie Taylor


Os meus pés não chegavam ao chão e ficavam ali a baloiçar para a frente e para trás, outras vezes batiam naquela espécie de caixote de madeira e o homem dizia-me, está quieta, ou, não consegues estar quieta e eu respondia, não. No entanto fazia um esforço e de tanta força que fazia, deixava cair um sapato e assustava-me, o homem ria-se e eu dizia, Paco? E conversávamos os dois, sem pressa de ter a franja no lugar, a cara ligeiramente de lado, os joelhos unidos, os olhos a rir e a boca a sorrir.
Paco era espanhol, mas eu entendia tudo o que ele falava e ele ensinava-me como é que as lentes funcionavam e o flash e a aura que ficava depois do disparo, o arco-íris de cores a piscar na parede branca e mostrava-me os álbuns de fotografias, imensos, com tantos meninos sempre a sorrir e senhoras quietas, o olhar perdido quem sabe onde, senhoras antigas do tempo em que os cabelos não se despenteavam, em que os sorrisos eram discretos, calados, aquietados como as senhoras quietas. Paco sabia as histórias dessas senhoras, às vezes tristes outras tão breves como as suas breves vidas e inventava-me outras histórias de quando ele andava na guerra e lutava para que os homens fossem iguais e eu sabia o estranho que seria, ser igual àqueles meninos sempre a sorrir, de sapatinhos de laço, pés juntos e a mão pousada sobre o joelho direito.
E para estar assim quieta e não tremer, eu imaginava que era um peixe no fundo do mar, dos que ficam imóveis durante muito tempo e não piscam os olhos porque não têm pestanas e apenas movem um milímetro das barbatanas, apesar das correntes, apesar das anémonas e das lulas gigantes, dos tubarões e das baleias brancas.
Depois teimava, o meu pai tinha uma máquina Kodak e não precisávamos de estar assim sentadas num banco. Paco fingia que não ouvia, enfiava a cabeça numa enorme manga preta e disparava. O arco-íris era da cor dos peixes do mar e eu sabia que nos álbuns antigos os meninos tinham baloiçado os pés de riso.

3 Responses so far.

  1. Os seus "pés também não chegavam ao chão e ficavam ali a baloiçar para a frente e para trás"?...
    Como eu a compreendo, e também ficavam pendurados na borda do colchão?... A vida é um calvário para quem está condenada a esta horizontalidade, só que a menina tem mais sorte do que eu, pode entregar-se à pintura e à poesia, já eu, mesmo que não me entregasse, vinha o calvário ter comigo, um grande sofrimento, benzó-deus, e olhe
    Feliz Natal, da sua aleijada :-)

  2. .

    .

    . até anda por aí uma invejosa que intitula a escritora deste e de outros contos como "deusa de pés esvoaçantes" . e não deixa de ser verdade . :) . é mesmo . :) .

    .

    .

  3. ki.ti says:

    uma ração-peixe é que era, já não posso com frango

 
 

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