domingo, 8 de maio de 2016

na cozinha

Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas

Gostava de se sentar ali. Entre a janela aberta e a torradeira, os pés em cima de um banco alto, o computador portátil sobre os joelhos. Do lado esquerdo, um copo gigante de chá gelado, na cabeça, as palavras que marcavam encontro consigo àquela hora da tarde. Indefinida a hora, antes do pôr-do-sol, à tardinha, ao fim do dia, tanto faz. Reconhecia-a pela inclinação dos raios solares e pela temperatura morna da pedra bancada da cozinha. Quanto mais morna a pedra, mais gelo colocava no copo.
O segredo do chá está na qualidade das folhas e no tempo de infusão. As primeiras devem estar livres de saquetas, bolinhas de metal cinzento com ou sem a palavra tea gravada, o bule escaldado e a água fervente. O tempo ideal de infusão é alheio aos ponteiros do relógio, aprende-se sentindo, intui-se. Tempo a menos, o chá não abre, não liberta o sabor e o perfume, um segundo a mais e o chá amarga, ultrapassada irremediavelmente a barreira da perfeição. O chá gelado é uma efabulação do círculo polar antártico, macera em pedaços de limão acabados de colher, numa estadia alargada no frigorífico, cristalizado em gelo e açúcar mascavado.
Se esticasse as pernas até ao seu limite, tocava com as pontas dos pés na bancada em frente, a do lava-louças, uma concha gigante, uma torneira de concha, inteligente, a água corria se falassem com ela, qualquer coisa assim, quero lavar o copo, por favor. E a torneira abria. Se por um acaso estivesse apressada ou sem paciência e dissesse, despacha-te, preciso de água quente para lavar a porcaria da frigideira das batatas, a torneira não se mexia, recusava-se a colaborar, numa teimosia estática e obstinada, até as vozes se adoçarem e lhe dirigirem palavras suaves.
Não se podia queixar, tinha sido uma sua criação, um desenho elaborado por si e o canalizador bem a tentara dissuadir dizendo que aquilo era uma coisa estranha, imprópria, não lembrava a ninguém e que ela apenas poderia esperar o pior daquela singularidade. Numa casa antiga em que as canalizações estão repletas de ursos e as telhas não precisam de ser de vidro porque têm imensos buracos que lhe permitiam ver o céu, ela esperou sempre o melhor. E o mar do norte chegava até si nos dias de tempestade, os cacos de conchas partidas entupiam os canos e muitas vezes a água era salgada e salgada era a sopa ao jantar.
Às vezes, ele chegava àquela hora do entardecer quando ela pousava os pés na beirinha da bancada, o copo do chá gelado à sua esquerda, o portátil sobre os joelhos. Mordiscava-lhe a ponta dos dedos e ela sabia que ele estava ali no lava-louças pejado de conchas e água do mar. Alisava-lhe as barbatanas dorsais, dava-lhe bocadinhos de camarão e ele saltava para o copo do chá e soprava-lhe folhas de risos e de palavras insensatas com as quais ela construía histórias como se de facto soubesse escrever.
 
 

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