terça-feira, 17 de janeiro de 2017

"Teorema das Esferas", para Hélia Reis, que agora iniciou a sua grande viagem






Para a minha Tia Hélia, para quem, num tempo, as palavras matemáticas foram vozes opostas do silêncio






A memória é escassa, e o esquecimento fundo
e as longas baías vividas no navegar profundo
dos invernos longos da inquieta solidão,
devassada nos sóis baixos da luz rasa,
e o deserto dos interiores
e as curvas planas das audácias de outrora
e os oceanos atravessados
na vertical das atmosferas,
de um tempo em que se galopavam continentes
e havia sorrisos brancos
de liberdades quentes,
namíbias ao estender da mão, 
e planaltos de escala inversa,
pela manhã, o sol, a fenecer à tarde no poente
raso e seco e brutal e ardente,
quem não lembraria hoje aquela luz cegante?

E as estações foram-se acumulando
na deriva de tantas áfricas austrais,
cantadas na voz dos insetos sibilantes
e odores das torrentes, 
e fomos recuando pelos zénites todos,
mudado o inverno pelo saudoso outono,
e, esquecida a primavera,
sentámo-nos,
frente a frente,
como se fora o verão omnipresente,
e mergulhámos os olhos nos olhos,
apenas uma criança de face apagada,
na busca de paisagens distantes,
cumes devastados em rasadas dunas,
tal o Tempo,
e o tempo, do tempo, do tempo,
ressonante, num vertiginoso circular,
e, com um dedo mágico
do iniciático evocar,
lhe tracei nos ares o inefável triângulo
de um geométrico inconsciente,
e proferi as palavras délficas
do oráculo sem nascente,
e a hipotenusa forçada ao seu quadrado
e,  do lado em frente,
inesperada e flutuante,
a apagada voz se ergueu
para completar as delidas linhas
daquela memória extinta,
soletrando a eterna vertigem dos catetos,
forçada à escravidão
um dia pronunciada por Pitágoras,
muitos éons após o Homem a ter sabido,
e assim iniciámos a nossa hipnótica ascensão,
como se,  eterno retorno
das verdades estelares,
ali pudéssemos recuperar,
na Harmonia da Esfera,
o desinteressante desfiar
da transitoriedade humana.
 
 

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