domingo, 12 de fevereiro de 2017

Caretta caretta

Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas

Quando o homem lhe falava suavemente, ela esticava a sua grande cabeça e ficava imóvel a ouvi-lo, o bico entreaberto, suspensa ao mais leve movimento da sua mão direita, enquanto a esquerda segurava o balde de zinco e os joelhos dobrados num equilíbrio perfeito tremiam um pouco.
Era como um jogo, em que cada um tirava o maior prazer da companhia do outro e à primeira mão-cheia de caranguejos e camarões lançados para a água ela escancarava a boca e engolia-os com enorme sofreguidão. Depois dava uma volta sobre si mesma e num agradecimento mudo afastava-se, as barbatanas dianteiras empurrando-a para a frente, as posteriores, como os remos seguros de um barco.
Não ia muito longe, porque o tanque era pequeno e a algazarra das crianças não a deixava sossegar, gritavam, mais! E ela comia mais, só para lhes agradar. Às vezes, distante, muito distante na sua memória de criatura das águas profundas e das correntes potentes, sentia o cheiro da maresia e não sabia que era assim o cheiro mar e vinha-lhe uma saudade imensa de algas, moluscos, águas-vivas e camarões, cascos de navios, praias de areia quente e os recifes de coral que apenas ela saberia encontrar.
Um dia, depois de tantos dias, que se os soubesse contar não os contaria nunca arriscando-se a morrer cativa de tristeza e medo, caladas as vozes agudas dos meninos e vazio de comida o balde de zinco, o homem falou-lhe de uma outra forma que ela não entendia, de liberdade e profundidade, da crueldade que terminava e da coragem que ela teria de sentir para se soltar. Do peso que teria de ganhar, das corridas para exercitar os músculos e as barbatanas e o pescoço forte e o olfato apurado para procurar o seu próprio alimento e a maior de todas as lições: não confiar nele, nem em qualquer outro humano, esquecer-se para sempre de quem a cativou para que o seu próprio cativeiro terminasse.
Ela que ouvia tão bem as baixas frequências, sentiu que perdia o que não desejava perder, mas imaginou o cheiro da maresia e esticou um pouco mais a sua enorme cabeça e o homem disse pela última vez, minha querida cabeçuda e fez-lhe uma carícia mesmo por cima dos olhos.
Largou o tanque pequeno onde ecoavam as gargalhadas das crianças e o apito do comboio que a ajudava a dormir, perdeu o medo de águas um pouco mais fundas e aprendeu a identificar o seu alimento, a procurá-lo sem a ajuda do homem, a nadar, a mergulhar, fez-se forte, cresceu, ganhou peso e determinação.
Os homens, orgulhosos dela, soltaram-na então no mar alto, já ela sabia há muito que estava preparada para o fazer e eles ainda não. Mergulhou no oceano e na memória de um tempo guardado no seu coração, em que os perigos espreitam e as barbatanas fortes e a carapaça de uma tartaruga não são nada, comparadas com a luta de todas as horas por uma sobrevivência ameaçada, pela doçura de uma areia quente onde irá desovar, multiplicando as formas hidrodinâmicas dos seres que não são peixes, nem algas, nem caretas, nem homens, nem aves. 
De longe em muito longe, ainda sente uma leve carícia entre os olhos e a frequência baixa da voz do homem que a ensinou a voar.  

One Response so far.

  1. Arrebenta says:

    A tartaruguinha cagadal é linda, pelos verdes. Está assustada com a arte digital do Verhaest. a E-ko voltou ao campo. Já lhe recomendei a divisão do fim de semana. Assim descanso eu :-)))

    penso eu de que...

 
 

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