domingo, 8 de dezembro de 2013

como uma pele fina e macia

Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas


Quando nasceu ouviram-se três gritos de uma ave e ninguém soube explicar porquê. A mãe olhou-o, sentiu-lhe o peso, contou dez dedos das mãos e outros dez dedos dos pés, admirou a perfeição das orelhas e a força do choro. Por fim observou que no lugar de cada sobrancelha, pairava uma nuvem branca. Não se assustou, não ouviu os presságios dos falsos magos nem tão pouco as dúvidas das outras mulheres. Chamou-lhe Li e disse, vai ser feliz este meu filho. Li cresceu robusto e ágil e as nuvens-sobrancelha cresceram com ele. Nos dias de mercado estendia um tapete azul no meio da praça e fazia acrobacias, saltos, cambalhotas e fazia rir as crianças que faltavam à escola só para o ver. Li mimava os trejeitos do governador, a vaidade da mulher do chefe da aldeia, a avareza do mercador, a imponência do juiz. E quem o via aplaudia e os mais fracos sentiam-se mais fortes e os injustiçados menos carentes de justiça.
Nas tendas comentava-se a coragem de Li, mas o rancor que criava no palácio e no tribunal ia aumentando, surdo e viscoso.
Li, alheio à verdadeira maldade dizia-lhes, esta é a minha arte, eu imito o que vejo fazer.
Uma noite sem lua quando todos dormiam e calados estavam os cães porque nada havia a temer, chegaram dez homens armados e arrancaram Li da sua cama e a mãe temeu pelo filho que desejava feliz e as nuvens brancas de Li escureceram e choveram lágrimas e água doce do céu.
Nos dias de mercado os homens estendiam um tapete azul no meio da praça e as crianças eram a ausência triste do riso e das palmas.
Mas Li era robusto e ágil e não cedeu ao medo nem à solidão e ao completarem-se trinta dias de cativeiro ainda nenhum juiz ousara acusá-lo de crime algum. Na madrugada do trigésimo primeiro dia uma ave gritou três vezes e quando os guardas abriram a cela, encontraram-na vazia. O governador disse, deixem-no, já deve ter aprendido a lição. Mas a verdade, é que temia a inocência de Li e sabia da vacuidade do poder.
Li sabia muitas coisas e intuía outras tantas, mas não sabia viver sem as suas histórias na certeza de que representando fazia girar a aldeia e com ela as montanhas e os barcos e a profundidade do rio.
Juntou então pedaços de madeira escura, cartão preto, varas, fios, tachas, e com uma tesoura recortou as figuras de todos os habitantes da aldeia, da mãe, do governador, do juiz, das crianças, das aves. Depois pegou numa pele de peixe fina e macia, esticou-a até à máxima tensão e colou-a sobre os seus bonecos. Guardou-os cuidadosamente numa caixa pintada de flores e só os soltava nas noites escuras, a fonte de luz por detrás de um pano branco e ele ajoelhado no tapete azul, invisível na subtileza das sombras.
E já não era ele mas sim os bonecos que falavam, contra luz, que é uma outra forma de ser amado.
As crianças tresnoitavam e riam e aplaudiam e adormeciam de manhã na escola só para o sentir.
 
 

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