Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas
Dedicado aos meus
alunos da ESAD, onde este tema tem sido, ao longo dos anos, recursivo
É sintomático de todas as grandes
civilizações endossarem longevidade e Sabedoria, pois quanto mais a longevidade
se aproxima da Sabedoria mais a Civilização se torna civilizada, o que é um dos
axiomas da permanência e arcano da Cultura. Pelo contrário, quando as
civilizações se diluem num efémero Eterno Presente, toda esta longevidade se torna
contraditória com a sua própria fluência, e se converte num obstáculo ao Mito
da Eterna Juventude.
Sobre Manoel de Oliveira, muitas
coisas se poderiam dizer, sobretudo pelos apreciadores ou depreciadores da sua obra,
em nenhum dos quais me incluo. Manoel de Oliveira interessa-me muito mais,
enquanto doença de Portugal e doença do lugar europeu.
Como delineado por D’Ors, a
travessia barroca das culturas inevitavelmente apresenta sintomas de
contaminação de área, com a arquitetura a ser invadida pela joelharia, a
pintura pela retórica ou a música pela poesia. Com Manoel de Oliveira a transgressão
deu-se, inicialmente, por uma extensão da literatura ao espaço do cinema.
Enquanto elasticidade topológica, e sinal de inexistência de proteção
imunológica, esta deformação literária passou a integrar o tempo e a ganhar um
lastro incompatível com a contemporaneidade, conferindo corporeidade a objetos
progressivamente mais monstruosos e in manuseáveis.
Concomitante com a crise do
Cinema Europeu, atida, pela incompatibilidade da sua essência iminentemente
política com a necessidade de uma arte acomodada e afável para com as transgressões
económicas e financeiras imperantes, ao expansionismo neoliberal, o séc. XXI cinematográfico
já não comportaria pasolinis e mesmo as poderosas radiografias dos submundos
secretos de Polanski logo foram colocadas sob tutela, e atoladas em grotescos
processos judiciais. Essa verve nacionalista, enquanto distintora das
qualidades culturais dos percursos históricos locais, sempre aspirou à
universalidade, o que originou o pilar plural dos anos de ouro da cinematografia
europeia, por oposição ao quase monocordismo das produções americanas. Simultaneamente,
o declínio do padrão francês face à ascensão do romance anglo-saxónico, com eventual exceção de Woody Allen e David
Lynch, um cinema de efeitos e psicologismos elementares, assentes na força, tomou
de assalto os gostos das massas desvitalizadas da contra reforma dos Anos
Hippies, e fez colapsar os espaços de criação europeus. A perversidade de tal
processo atingiu o seu clímax na apropriação sincrética dos mesmos atores da
colonização anglo-saxónica, a par com os protagonistas da tradicional retórica cinematográfica
cisoceânica, como aconteceu, num sentido, com Almodóvar, e em sentido totalmente
inverso, no papel exemplarmente desempenhado pelo criador Manoel de Oliveira.
Sendo que o roteiro desta colonização secreta e dos seus intervenientes ainda está
por fazer, a questão, como Wenders poderia dizer, será sempre a de ter de identificar
a longa linhagem de homens que traiçoeiramente venderam a Europa à América. Ironicamente, enquanto, por todo o
lado, morriam Pasolini, Visconti, Bergman e Fellini, Manoel de Oliveira sobrevivia
e persistia.
Os problemas estéticos de
Oliveira, única matéria que nos interessa, são múltiplos e incontornáveis: o
primeiro, o da longevidade, permitiu
que servisse muitos senhores, orientando-se pela diversa cor das suas muitas
vontades. Não é caso único, como o fluctuat
nec mergitur de Almada, de quem é, em contra simetria, sombra, ou de Sade,
que sobreviveu a todos os regimes, conseguindo que todos o hostilizassem. Todavia,
ao contrário do Divino Marquês, e na implícita crise da criação dos
totalitarismos, Oliveira foi pacífico, e assegurou, com estabilidade, o seu
lugar social, transitando para a Democracia com a mesma impavidez anterior. Ao
contrário de Saramago, do qual se distingue pela não negatividade de caráter e
pela fidelidade aos lugares da identidade nacional, não incomodou antes e ainda incomodou menos depois, embora tal não consiga ir mais
além de meras minúcias e considerações biográficas.
O segundo problema estético de
Oliveira são as referências, fundindo
um autismo de linguagem cinematográfica com o anacronismo das suas fontes
literárias. Não por acaso, morreu no ano do centenário de “Orpheu”, persistindo
nas ancoragens ultrarromânticas de Camilo e dos neocamilianos, ignorando os
entrechos do nosso/seu tempo, o que seria plenamente válido, como em muitas
linguagens da Contemporaneidade, não fosse esta fixação nas mesmas palavras uma
implícita exclusão totalitária de quaisquer outras. Foi brilhante, enquanto
desportista, e escultura humana, digna do olhar de Riefenstahl; já em “Aniki-Bobó”
se encontrava obsoleto, ao colocar-se ao lado do Neorrealismo, contra a voragem
surrealista.
O terceiro problema estético é o
de uma clara violação do postulado da economia.
Nunca, como em Oliveira, o Princípio de Maupertuis foi tão vilipendiado:
passando de um cineasta da hora local, tornou-se numa referência de delapidação
de recursos, que não poupou atores, cenários, adereços e meios. De simples fenómeno
regional, se converteu num lugar de exibição de poderes, mas ao contrário de
Arquimedes, que pedia um mero apoio, para, com uma alavanca, levantar o Mundo,
Manoel de Oliveira teve nas mãos um mundo inteiro e não conseguiu senão demarcar
precários apoios e permanecer no estatismo do mesmo local.
O quarto problema estético de
Oliveira, do qual foi involuntário protagonista, prende-se com a dupla
polarização do tempo crítico que atravessamos. Como Cesariny ironicamente
dizia, Oliveira era um pretexto para o cinema mais retórico do Mundo, o
Francês, ter conseguido autojustificar-se, ao forjar um ainda mais monótono do
que o seu, e aqui chegamos ao fulcro da nossa crítica maior, a do
papel desempenhado por Manuel de Oliveira como agente contemporâneo de um
neocolonialismo cultural, tantas vezes vivenciado, entre franças e
inglaterras, pelo país português. Assim como a Academia Sueca, em risco de
terminar o séc. XX sem nunca ter atribuído um Nobel à monumental e milenar
literatura portuguesa, incorreu no erro de o desperdiçar num epifenómeno de
visibilidade duvidosa, também a longevidade de Oliveira permitiu que ele se
tornasse numa inesperada testa de ferro das reações de retaguarda contra a maré
de normalização do cinema de efeitos sem enredos da máquina de intoxicação hollywoodesca.
Esta questão é, todavia, menos grave do que o historicismo que a acompanhou, e
constitui o problema estético seguinte.
O seu quinto problema estético é
o do imobilismo associado à conceção
de metrópole e colónia. Num preconceito etnocêntrico, a História apenas decorre e
se constrói nos grandes polos do Mundo, restando aos outros lugares o do espaço
do turismo da visitação. O típico, o local, o pitoresco, o imutável e inalterável ficam assim para as franjas da
Civilização, os lugares himalaicos, os espaços artesanais, os relógios do tempo.
Para os buscadores das danças sagradas tailandesas a maior heresia bastaria ser
a existência de uma expressão coreográfica sudoasiática contemporânea, assim
como ninguém espera encontrar uma máquina automática de distribuição de
cigarros no seio das amassadoras tradicionais de pão berbere, do Anti Atlas, e,
no entanto, ali também se fuma… Ao tornar-se num realizador típico, coartou à cinematografia
portuguesa a possibilidade de se tornar num motor vanguardista de uma
hipotética revitalização da linguagem europeia, e converteu-nos, pela exposição
das nossas obsessões menores, num mero lugar de peregrinação regional. Ao
contrário das linguagens cinematográficas fortemente marcadas pela presença do
texto, como Duras ou Syberberg, o lugar do local não ascendeu à universalidade,
antes conseguiu, tão só, atrair para as periferias de um Porto sem luz uma
Europa pontual, e voluntariamente, anestesiada.
O seu sexto problema estético
deriva de tudo o anterior: ser um realizador cujas obras se destinavam, à
partida, ao gigantesco Museu do Esquecimento, convertendo todo o Cinema numa
insuportável forma de Arqueologia. Na
sua fase crítica, ou apotropaica, Manoel de Oliveira eventualmente conseguiu forjar,
num wagnerianismo obsoleto, uma peculiar forma de apoteose negativa da obra global, capaz de subverter a
criação cinematográfica num indigerível corpo de recitativo e recitação, de
musicalidade e estridência, de pletoras visuais e fotográficas, do onanismo pictórico
e da própria estagnação da dramaturgia, através da negação da ação do ator e
dos enredos. No seu implícito quinto império visual, Manoel de Oliveira foi um
pretexto para os seus promotores fundirem, numa velha linhagem de amálgama
cultural portuguesa, a anacrónica impossibilidade dos contrários. Ao tornar-se
longevo, escolástico, em tempo de cartesianismo, tornou um epifenómeno num
estado crónico de estagnação da nossa produção cinematográfica; ao tornar-se
institucional, estendeu o dantismo
literário à filmografia; ao ser patrocinado pelas culturas colonizadoras, tornou-se
numa castrante e impermeável Muralha da China da nossa criatividade. Manoel de Oliveira instaurou um irremediável Mar Morto da nossa cinematografia.
A longevidade de Manoel de
Oliveira, que muitos apontam como uma das suas maiores qualidades, é, de facto,
um dos seus maiores defeitos. Como Oscar Wilde diria, em Arte não há boas
intenções, ao que acrescento, nem máquinas de propaganda que eternamente durem.
Na verdade, Manoel de Oliveira já passou à História, a uma certa História, a um
lugar muito definido da nossa História Cultural, como um criador que teve
demasiado tempo para sanar a insanável fratura entre a sua obra e o potencial
público nunca granjeado. Ao contrário das polémicas artísticas da
contemporaneidade, e do maior ou menor tempo de que gozam para atingir a pacificação,
Manoel de Oliveira, um homem de província, do Norte, teve 100 anos para cativar
um público, que nunca cativou. Certamente os próximos cem lhe não serão mais
favoráveis…
Enquanto intelectuais e
criadores, a História imediatamente nos colocou em campos disjuntos e
incompatíveis. Tivemos a sorte de nunca nos cruzarmos, exceto na maior
liberdade que tenho, enquanto manipulador de escassos recursos, por oposição a
máquinas pesadas e inamovíveis, como a de Oliveira. Ao contrário do realizador,
o escritor apenas precisa de um meio de escrita, com o qual criará a meia linha
assassina que destruirá uma obra inteira. Como escritor, conheço o poder dessa
força; como não frequentador da obra de Oliveira, não me compete, a mim,
exercê-lo, antes traçando, como Gaius Popillius Laenas, a célebre linha de
areia no chão, que delimitará o reino futuro de Manoel de Oliveira.
Para que não fique uma profunda
sensação de negatividade no escrito e ainda possa presidir alguma beleza a este
ensaio, que se debruçou sobre alguém que foi humanamente inócuo, e apenas, por
equívoco, esteticamente nocivo, Winckelmann dá-nos uma excelente pista para o
modo como o Futuro poderá salvaguardar o património de De Oliveira: à maneira
do maravilhoso vidro ptolomaico, millefiori, um dia, em que os insuportáveis volumes cinematográficos
do autor se estilhacem, os vindouros poderão, mas só como fragmentos, extasiar-se
com alguns apontamentos fotográficos, alguns lugares de luz e cor, feridos pela
nostalgia da perda da infinita, mas insuportável, Atlântida cinematográfica, de
uma cultura claramente em agonia.
"Manoel de Oliveira, um homem de província, do Norte, teve 100 anos para cativar um público, que nunca cativou. Certamente os próximos cem lhe não serão mais favoráveis…"
e
"um dia, em que os insuportáveis volumes cinematográficos do autor se estilhacem, os vindouros poderão, mas só como fragmentos, extasiar-se com alguns apontamentos fotográficos, alguns lugares de luz e cor feridos pela nostalgia da perda da infinita, mas insuportável, Atlântida cinematográfica, de uma cultura claramente em agonia."
Isso!
Faltava a palavra evocadora "millefioiri".
Já foi reposta
Este é do meu tempo: o seu grande contributo para o Cinema Português foi paralisá-lo uma montanha de décadas
Um dos grandes abcessos do Cinema
Manoel de Oliveira, Agustina, Saramago, etc., etc...
Depois de meio século de estagnação política, cem anos de estagnação artística. Será interessante o que os vindouros dirão dos nossos tristes anos
"Adiado" ou... odiado?...
O choque pior vai ser quando de repente descobrirem que nem o homem nem a obra fazem falta.
Acontece :-)