domingo, 29 de maio de 2016

Eu e a maconha





        Ninguém entendeu por que, no início do século 20, as autoridades mundiais decidiram proibir a maconha. Não causava dependência, não trazia danos à saúde, não induzia ao crime. Se estes eram os argumentos, por que não proibir o álcool? Mas o álcool continuou liberado, porque sua proibição trouxe enormes problemas, como o surgimento de gangsters do porte de Al Capone. Situação parecida com a proibição do tráfico de drogas, por isso hoje há um caminho inverso, em que a maconha e outras drogas começam a ser liberadas no mundo todo.
        Logo cedo, quando eu tinha uns 13 anos, tinha vontade de usar alguma droga, especialmente para espantar a timidez, mas morria de medo de ser preso.
        Entre meus amigos, ninguém usava nenhuma droga. O negócio mesmo era álcool. Comecei a ver mais maconha a partir dos anos 90. Nos anos 80, a regra era beber até cair.
        O primeiro maconheiro contumaz que conheci foi aos 15 anos, um punk que só falava em brigas e maconha.
        Só fui mesmo me deparar com maconha diante do meu nariz aos 21, 22 anos, quando entrei no teatro do Macunaíma, onde eu havia estudado teatro, e o pessoal estava fumando maconha, inclusive um professor. Odiei aquele cheiro de bosta de cavalo e saí de perto, também com medo de que a polícia aparecesse a qualquer momento e prendesse todo mundo.
        Mas chegaria o dia em que eu experimentaria maconha pela primeira vez.
        Eu tinha 26 ou 27 anos e estava saindo do trabalho, de madrugada, quando uma colega me ofereceu carona. No ramo de bares, restaurantes e casas noturnas, o pessoal usa muita droga, quase tanto quanto no meio artístico e na universidade. Dentro do carro, havia mais um amigo. Assim que eu entrei, ela disse que iria preparar um baseado. Fiquei apavorado e disse que iria ao banheiro de uma lanchonete, enquanto ela preparasse. Na minha cabeça, iria enrolar o tempo suficiente para que eles fumassem. Fiquei parado na frente da lanchonete, quando ela apareceu no Fusca e buzinou para mim, perguntando se eu não iria entrar no carro. Falei que achei que eles iriam fumar antes, mas ela me disse que iriam fumar no caminho. Entrei assim mesmo.
        Não estava com fedor de bosta de cavalo. Ela disse que havia preparado com uma seda mergulhada em conhaque. Resolvi experimentar, mas como sempre acontece na primeira vez, não senti nada.
        Só fui fumar de novo no ano seguinte. Flagrei um pizzaiolo que trabalhava comigo sentado na calçada fumando. Já naquela época, eu achava que fumar maconha na rua tinha pouco glamour. O pessoal não se preocupa sempre em cultivar sedas, mas gosta de improvisar até com papel achado na rua. Depois, acham um palito de fósforo usado para usar como pilão, ao invés de andar no bolso com um pilão de prata ou algo assim. Fiquei até com nojo de alguns maconheiros podrões como estes.
        Pedi o baseado emprestado a meu amigo e dei umas belas tragadas.
        Resolvi andar pela Avenida Faria Lima e senti que umas gigantescas bolas de energia atravessavam meu corpo. As bolas vinham rolando pela Faria Lima e me atingiam. Eu achava a sensação curiosa.
        Voltei ao mesmo lugar e entrei numa lanchonete, onde havia outros amigos. Eles estavam paquerando umas meninas e eu sentei perto delas, com olhos vermelhos, chapadaço de maconha e tentei conversar, mas elas não me deram a menor bola, porque eram muito caretas.
        Algumas semanas depois, tive uma overdose de maconha.
        Peguei uma carona com amigos. Um barman, uma garçonete, um garçom e dois gerentes de restaurante.
        Começaram a passar o baseado e eu fumei demais. Fumei até o cu fazer bico e de repente, meu corpo congelou. Virei para minha amiga e disse: “Vou morrer”. Ela respondeu: “Não vai, ninguém morre de maconha”. Insisti: “Eu vou ser o primeiro a morrer de tanto fumar maconha”.
        Já não fazia a menor ideia de onde estávamos indo e penso que o motorista também não sabia onde estava indo.
        Meu corpo alternava frio e calor. Uma hora eu me sentia no deserto do Saara, em seguida me sentia no Pólo Norte. Surgiu a pior sensação: a de ficar em miniatura. Achei que meu corpo tinha diminuído de tamanho e agora eu estava do tamanho de um bebê. Quando eu tentava falar, achava que minha voz estava saindo fina e engraçada e fiquei com vergonha.
        Paramos num posto de gasolina. Pedi para alguém comprar água para mim e não cerveja. Eu achava que iriam me comprar cerveja e insisti para que trouxessem água.
        O motorista olhou para mim e disse: “Atrapalhou aí, é?”
        Consegui me arrastar para fora do carro e achei força para despaquerar a menina que estava com a gente, porque dias antes eu havia lhe dado um beijo à força e agora queria discutir a relação.
        Voltamos para o carro e o motorista continuou andando a esmo por São Paulo, sem saber aonde ir.
        De repente, chegamos a Avenida Paulista.
        Descemos do carro. A menina já tinha sido deixada na casa dela.
        Um dos chapadões, um rapaz carioca, resolveu sentar na Avenida Paulista, porque não agüentava ficar de pé. Eu peguei ele pelo braço e começamos a andar abraçados em direção a sei lá o que.
        Entramos num café. Achei que se eu tomasse um café expresso, iria me sentir melhor, mas continuei igual.
        Perguntei aos dois amigos se eu poderia dormir na casa de algum deles, mas disseram que não seria possível. Como é que eu iria para minha casa num estado lastimável daqueles?
        Despedi-me deles e resolvi pedir ajuda no Hospital das Clínicas. Vai vendo a loucura.
        Quando eu passava ao lado dos policiais, tentava disfarçar, como se fosse possível disfarçar.
        No pronto socorro do HC, havia uma fila descomunal de idosas e alguns idosos. Achei que era dia municipal de pronto atendimento a idosos, porque não vi ninguém que não era idoso.
        Sem o menor pudor, passei na frente de todo mundo e disse que precisava de atendimento urgente porque estava passando muito mal. Acho que o pessoal só fingiu que me atendeu, porque me mandaram para uma sala de espera gigantesca, com mais mil idosos deitados em macas.
        Eu até então não havia me desvencilhado de minha garrafa d’água e não parava de beber a eterna água, porque minha sede não diminuiu nem por um segundo.
        Eu ensaiava o que iria dizer ao jovem médico que atendia os idosos. “Oi, fumei muita maconha e acho que vou morrer”. Pensava que em vez de dizer “fumei maconha”, iria simplesmente fazer o gesto de fumar, levando os dedos à boca.
        Sentei-me num banco e dormi.
        Não sei quanto tempo dormi, mas percebi que não morri e estava me sentindo bem. Considerei que conseguiria chegar em casa.
        Foda foi pegar o metrô lotado na Estação Paraíso. Eu não estava em condições de ficar de pé, mas teria que ficar. Tive a impressão que levava uma hora de uma estação à outra.
        Quando enfim cheguei ao Tucuruvi, ao entrar na lotação, o cobrador olhou bem nos meus olhos, que deveriam estar vermelhíssimos.
        Naquela época, minha mãe morava num casebre de dois cômodos e durante o dia era um barulho extremo. Mas deitei na cama e dormi como um bebê.
        Acordei pensando: é assim que se torna usuário de maconha. Porque fiquei com vontade de fumar maconha todo dia, para poder dormir em paz. Aquele meu amigo pizzaiolo me disse que iria me vender maconha fiado e tudo o que eu não queria na vida era ficar devendo dinheiro para traficante. Recusei.
        Fui morar com meu amigo carioca numa pensão da Rua Augusta e aí eu fumava maconha por tabela ou dava umas tragadas quase todo dia. Ou todo dia. Limitava-me a ficar zonzo, mas houve um dia em que estávamos bem chapados e eu convidei o carioca a comer pizza.
        Começamos a descer a Rua Augusta e eu falei: “Cara, já passamos a padaria a miliano”. “Podecrer”. Quando caminhamos de volta, percebemos que não havíamos ainda nem saído do quarteirão.
        Por culpa da maconha e dos atrasos no pagamento do aluguel, fomos expulsos da pensão.
        Só fui fumar de novo três anos depois.
        Eu tinha tomado um fora terrível de uma namorada e achei que se falasse com uma amiga minha, ela poderia me fornecer maconha, porque eu estava precisando muito. Eu já havia saído com ela e amigos dela antes e eles fumaram maconha, mas eu não quis sei lá por que. Coincidentemente, no mesmo dia em que liguei, ela me disse que estava tendo uma festa na casa de uma amiga dela e eu deveria ir.
        Cheguei lá e havia uma sala só de maconheiros. Achei engraçado que minha amiga mesmo não sabendo que eu estava sofrendo e achando que eu não era usuário, me colocou na sala da maconha do mesmo jeito, intuindo que eu deveria usar.
        Fumei, mas não muito. Mas meu sofrimento passou. “Então é por isso que as pessoas fumam maconha”, pensei.
        Na manhã seguinte, resolvi acompanhar minha amiga até a estação Tietê, onde ela pegaria um ônibus para sua cidade, e ela me contou uma história que não entendi uma palavra sequer. Esqueci de dizer que durante a madrugada, por culpa da maconha, resolvi ler tarô para ela e numa das leituras, eu perguntei quando é que a gente ia namorar. “Isso depende de você”, ela respondeu. Não entendi a resposta dela, nem quis perguntar mais, tamanha a vergonha que fiquei de ter falado aquilo. Maldita maconha. No metrô, quando ela terminou sua história muito louca, eu respondi: “Esta é a história mais louca que eu ouvi na vida”. Eu me senti dentro da música “Qualquer coisa”, do Caetano Veloso.
        Nenhum destes motivos me tornaram usuário de maconha. Nunca comprei maconha na vida. Eu achava que maconha era uma coisa tão boa que eu não deveria usar, do contrário, iria mascarar todos os meus problemas e apagar meu cérebro. Eu queria continuar sofrendo. Pensando e sofrendo.
        Não fumei maconha nunca mais. Pode ser que eu volte a fumar um dia, para matar a saudade e viver mais alguma história louca.

 
 

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