domingo, 26 de junho de 2016

segundo conto longo como os dias e o rato falou

Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas

Da torreincompleta avistam-se três ilhas que correspondem a outros tantos reinos. A mais longínqua tem cem metros quadrados e é habitada por malévolos macacos verdes de dentes amarelos. Alimentam-se das folhas verdes de um arbusto e de lagartas viscosas e igualmente amarelas. Os ratos são o seu alimento preferido, apreciando-os grelhados e tostados. Pegam-lhes pela cauda, mastigam-lhes a carne e cospem os ossos frágeis. O seu rei é o macaco Máximo conhecido pela sua ferocidade, implacável para com os da sua espécie, vingativo para com as outras. Os marinheiros temem aportar àquele reino e só os mais corajosos e curiosos o fazem.
A segunda ilha tem metade da superfície da primeira e é o reino do rapaz Azul. Os seus habitantes são crianças de olhos e cabelos azuis e ninguém sabe como foram lá parar. É a mais bela das ilhas, frondosas as árvores, nascentes de água doce que brotam das rochas e uma praia imensa de areia fina e águas transparentes. Os meninos azuis constroem casas de madeira e brincam o dia inteiro. Às vezes cansam-se e ficam com as saudades de crescer a sombrear os olhos. Então o rapaz Azul deixa-os partir num barco à vela e navegadas duas milhas os olhos regressam à sua cor original e os cabelos pintam-se de castanho, louro ou preto. Quando chegam a terra os braços e as pernas são já grandes, mas guardam para sempre uma marca azul no lóbulo da orelha esquerda.
A terceira ilha é a mais pequena, quinze metros quadrados e talvez nem seja uma ilha, antes um enorme rochedo. Possui dois faróis, um em cada uma das pontas e um faroleiro. A sua rainha é a gaivota Guincho, mais pequena que as outras espécies, mais inteligente e todas as gaivotas guincham ao entardecer. O faroleiro acende os dois fachos de luz branca porque a norte são traiçoeiros os baixios e a sul sopra o canto das sereias.

Para o homem que narrava e para o rato que ouvia, eram tão visíveis e palpáveis estas ilhas, como as pedras, os livros ou os armários da cozinha. Por isso também não se espantaram quando o rato falou. O homem, porque acreditava em prodígios, o rato porque os aceitava como naturais. Foi nessa altura que lhe deu o nome de Rato, ao rato. E o homem trabalhava e o rato deambulava por ali. Uma noite, vinda do alto, deslizou sobre as suas cabeças uma enorme e silenciosa massa branca. O rato gritou, Máximo!
Não é possível, pensou o homem, o macaco é verde, vi apenas uma sombra e mais nada. E quando chamou, Rato! foi o nada que lhe respondeu. Mas por muito pequeno e diferente que seja aquele que nos faz companhia e reconhece o som da nossa voz, não nos daremos tréguas na sua busca até o encontrarmos e entendermos porque de nós foi roubado.
E procurou-o na cisterna abobadada, nos túneis, nos quartos, nas salas, nos canos da água, nos buracos dos rodapés. A senhora da consolação seguiu-o e soltou o cão e disse, busca, e deu-lhe a cheirar um pelo do bigode do rato Rato. O cão, habituado a mimos e rezas, perdeu-se pelos corredores a cheirar os espíritos da casa. Por fim o homem lembrou-se da torre incompleta de onde se avistavam as ilhas e iniciou a subida pela longa escada em caracol. Eram duzentos os degraus e descansou a cada cinquenta e chegado ao cimo respirou. A penumbra fez com que piscasse os olhos e apurasse os ouvidos e avançou com todo o cuidado pela plataforma. E viu-a, pousada numa das traves. Grande, a face branca dir-se-ia um coração, os olhos fixos, o corpo mesclado de castanho alaranjado e ele calado, o coração aos pulos. Ela roda a cabeça num impensável grau e abre as asas enormes de uma brancura imaculada e sai pelas janelas, um voo silencioso, noturno, solitário. O homem sente-se estontear perante aquela coruja, nem ave nem anjo. E à sua direita numa abertura das pedras descobre um ninho com cinco pequenos pássaros e o rato no meio deles, vivo e esperto a contar histórias e as pequenas corujas a ouvir: a segunda ilha tem metade da superfície da primeira e é o reino do rapaz Azul.
Depois o tempo parou um segundo, indeciso o voo da continuidade da vida. O homem, o rato, a senhora da consolação e o cão, encontraram uma linha suspensa que não está ainda escrita. É como as sombras escondidas da lua, é como aquilo que perdemos e não sabemos aceitar. É o perigeu de todos os seres diferentes que tomam a nossa voz.
E ficaram horas a contemplar o voo da coruja. Por fim a senhora da consolação deu uma tigela de leite ao rato, guardou-o no bolso da saia e o homem disse olhando a ave, chamo-lhe Ângela, o nome da minha mãe.
 
 

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