domingo, 28 de maio de 2017

o que o rapaz contou

Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas

Confio-te o meu livro de viagens por dois ou três dias, talvez uma semana ou quem sabe, um mês. O tempo é relativo. Demasiado curto quando nos sentimos bem, longo na inquietação, infindável na tristeza.
O rapaz falava devagar e as suas palavras pareciam vir de uma outra pessoa que não ele. Estranhei-o assim tão sério, mas não disse nada.
Como devem estar recordados, o livro a que ele se referia é secreto e invisível e apenas sabemos que está presente pela inclinação súbita dos raios solares, pelo ladrar de um cão, pelo cheiro forte a pão acabado de fazer.
Está bem, disse-lhe. Guardo-o, escondo-o para que ninguém o veja. E estendi as duas mãos para o receber. O rapaz perdeu o ar composto e gritou, que desajeitada, deixaste-o cair. E bateu os pés, morto de riso. Depois baixou-se, apanhou-o e disse, lê o que eu escrevi sobre a minha terceira viagem.
Sentámo-nos ali mesmo nos degraus da escada, a trovoada ao longe e o ar quente carregado de humidade. O rapaz insistiu, desde quando é que precisas de ver para ler. Não preciso, respondi. E lemos os dois.
Caiu a primeira gota de chuva, pesada, gorda e seguiram-se as demais, espaçadas, quase mornas. Foi quando nasceu a filha de um rei e era bom o rei e rejubilaram todos os habitantes daquele reino de árvores de grande porte e muita chuva, porque quando nasce uma criança abre-se uma porta e deita-se fora a chave e o futuro cumpre o seu destino.
Mais à noitinha, já as chaminés fumegavam e os velhos dormiam, é que perceberam que a criança tinha sete dedos em cada mão, para que gostassem dela as folhas das árvores de grande porte naquele reino de muita chuva.
Um dia, atraídos pelas árvores e pelas folhas esguias, chegaram a bicicleta azul e o rapaz molhado até aos ossos e receberam-no o rei e a filha pequenina. Ficou por muitos dias e ensinou a filha do rei a andar de bicicleta e ela com os sete dedos em cada mão, nunca caía. 
Quando regressou, trouxe consigo algumas folhas e muitas gotas de chuva.  

2 Responses so far.

  1. SETE

    Sete eram os dedos de uma mão
    e da outra onde cabe o coração
    sete era o número onde cabiam
    as estórias maravilhas que nos criam

    JLF

  2. Ao chegar a fronteira branda do verão, até o discreto vermelho das folhas do ácer, sete dedos em forma de flama cor, esmorecem e avançam para toques secos do nosso olhar. Assim se inaugura ao sétimo mês, o sétimo primeiro mês do inteiro verão.
    É, pois, a hora do estio

 
 

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