quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Infinitos fragmentos de estrelas, para Maria Amélia Ganho de Mello (Breyner)

Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas

O Mundo está repleto de sombras, que nunca ascenderão à forma humana. De entre poucos, Maria Amélia tinha todos os predicados daquela sombra de uma sombra, nome dado por Píndaro aos parcos humanos, dos jogos imortais.

Durante os anos seletos de um Portugal perdido, muitos, de entre poucos, se faziam à estrada, deixando Lisboa pelas costas, e rumando a Montemor, onde, no seu monte discreto, Maria Amélia assegurava um reinado do Absoluto. Como todas as coisas importantes da vida, nem o lugar, nem ela, estavam imediatamente à vista, e eram um segredo guardado, precisado de afastar com as mãos, para, por detrás dos ramos, enfim, entrever o santuário, que Maria Amélia construíra no "Chaparral".

Uma lei da pobreza diz que a arte maior da culinária se deveria reger pelas economias do esforço final. Como todas as figuras grandes, Maria Amélia vivia exatamente ao contrário, colocando um esforço enorme, muito acima de quaisquer economias, já que uma das formas mais elevadas do amor do próximo é saber despertar-lhe um sorriso, pelas formas subtis.

Todas as Artes, que se sufocam em perfumes, odores e paladares, também conhecem os seus maiores mestres, cuja generosidade é empenhar o talento extremo no esvair do efémero. Há os que criam as sombras dos perfumes, e os que sonham com a volatilidade do tato. Maria Amélia, pelo seu lado, conhecia todas as subtilezas da arte do paladar.

Na cozinha portuguesa, onde reina aquela perigosa elipse da falta da tradição palatina, que nos atira para os extremos da tradição popular, ou as doçuras sublimadas dos conventos, há uma dificuldade circular, que envolve o público, a História, e a miséria do presente. Na realidade, sempre que a moda, hoje, nos invade com figuras patéticas, que, com décadas de atraso, epigonizam o que, "lá fora" já está profundamente obsoleto, a colherzinha de arroz, com um quarto de alcachofra, encimada de meia folha de hortelã e um pauzinho de canela, ao lado, o rasto de um líquido colorido e coleante, com uma enorme cifra de euros ao lado, só me desperta aquela eterna vontade do pontapé, e de atirar a coisa pela janela, mas tudo isto não são, senão, sinais de que o tempo passa, e a miséria grassa. Em Barcelona, também o "El Bulli" fechou as portas, para se estilhaçar em vinte pizzas hut e alguns mac donalds, que é quanto deveria valer o melhor restaurante do Mundo.

A sentença disto é que são sinais de que as grandes coisas estão a ficar fora de moda.

As massas detestam a sofisticação, e clamam pelo patamar mais baixo. Maria Amélia, obviamente, estava completamente fora de moda, e essa era uma das suas maiores grandezas. Tinha a arte de tornar as coisas populares em palacianas, e as palacianas em sumamente artísticas. E é verdade que ninguém montaria um restaurante ditado pelo prejuízo, para que o lucro fosse apenas o prazer dos seus felizes frequentadores. Se lhe deu medalhas e dezenas de prémios, nunca conseguiu fazer dela uma mulher de fortuna, exceto daquela fortuna sublime, que era ela própria, e a subtileza dos seus afetos.

Esta era a primeira Maria Amélia. A segunda, acreditava que viajar também era uma forma de eternidade, e é. Atravessava, agarrada aos apoios dos braços, aquelas sempre incómodas turbulências da convergência intertropical, a 32 000 pés de altura, quando se passa de hemisfério, e se vai procurar o verão nas terras de Santa Cruz.

Lembro-me do jacuzzi do "Ocean Palace". A Maria Amélia -- e esse era o seu pior defeito/qualidade -- adorava provar todas as maravilhas gastronómicas que criava, e isso ia, demasiado direito, para a sua massa corporal... Nunca esquecerei aquele misto de olhar desejoso e angustiado, de quem sonhava entrar na piscina azul, circular, cheia de jatos, mas não sabia como. Só a Maria Amélia me faria rir, e bastou estender uma mão, para a ajudar a entrar, embora eu não tivesse percebido o verdadeiro temor que a atravessava, o medo de... depois... não conseguir sair: "Luís, e, depois, como é que eu depois faço para sair?...", e eu, da mesma maneira que lhe dei a mão para entrar, disse, depois sairemos juntos, de mão dada.

Estava inaugurado o Paraíso. O tempo era de Plotino, com todos os seus níveis de ascensão para a Gnose. Também o jacuzzi continha minuciosas subtilezas nos seus vários jatos, sendo a primeira, a necessidade de o esvaziar de criancinhas horrorosas, arte na qual sou especialista, que é votá-las ao desprezo, até que se evaporarem. A partir de aí, o jacuzzi era nosso, e podíamos passar horas, entre as bolhas mais fracas, as inclinadas para a direita, as horizontais, o jato forte, a massagem total, e o prazer, realmente, absoluto. No meu limitado zénite, era bom poder ter dado à Maria Amélia, que tanto tinha oferecido a tantos, alguma coisa nova, simples, como são todas as maravilhas da vida.

Os dias sucederam-se aos dias, naquele corte do Equador, de 12 horas de luz e noite. Durante o dia, lentamente, transformámos o Jacuzzi no Belvedere, com Schönbrunn ao fundo, que não era mais do que o espantoso Morro do Careca, omnipotente, omnipresente, e magnético, desde a manhã, das varandas dos quartos até à derradeira luz do crepúsculo veloz, mas isso importávamo-nos pouco, porque a Cultura, como a sensibilidade, é uma coisa interior, e qualquer areia se pode converter num palácio, e uma piscina num pavilhão palatino. À noite, já sozinho, não dispensava uma passagem pelo jacuzzi, progressivamente batizado "Jacuzzi Maria Amélia", onde a Maria Amélia não estava, porque já dormia, mas o jogo de luzes percorria todo o espetro musical, através dos jatos de água desertos. Essa era a sombra noturna de Maria Amélia, que, para sempre, ali ficará.

A terceira Maria Amélia era mais perigosa, porque nos fazia colidir a dieta de sumos tropicais com as célebres lulinhas fritas, para comer, com a nossa Nicha, à beira da piscina. "Uma coisinha leve...", como ela dizia, e, realmente, era, comparada com as doses do "Chaparral", e a crise só se instalou quando as lulas, já então, também "Lulas Maria Amélia", se tornaram indispensáveis no nosso permanente vaivém de travessias do Equador, e muitas, e muitas vezes depois, ao longo dos anos, como um ritual, às vezes, até debaixo de brutais chuvas tropicais, se teve de render homenagem ao Jacuzzi e às Lulas Maria Amélia...

Voltadas as brumas da Europa, havia aquelas visitas de cozinha, onde o prato demorava uma eternidade até estar perfeito, e estava, depois de a Maria Amélia o ter provado dez vezes, para confirmar se estava no nível mais elevado de Plotino. Estranho é que se possa dizer que se pode ascender à Gnose, pelo Paladar, mas podia-se, tal como o Paladar era uma imperiosa forma do seu afeto, disparada em mil direções. Cá fora, entre os azevinhos, passavam os cães pela sombra, e procurávamos o célebre javali, que era a divindade ctónica daqueles espaços. Algumas vezes, ao mergulhar os olhos nos dedos de neblina que a noite trazia por entre as árvores, eu lembrava-me de que aquilo era solitário, e perigoso, como foi, mas até aí, ou sobretudo aí, Maria Amélia ainda se soube erguer mais alto do que o mais alto, numa história que não poderei grafar aqui.

Todos os sonhos acabam. Uma sociedade regida pela banalidade, sobretudo a pior banalidade, a banalidade dos sentidos, não se compadece com 100 quilómetros para ir conhecer maravilhas do paladar. Assim, o prazer implodiu, na forma dos números, e a Maria Amélia deixou o Alentejo pelas costas agrestes da Ericeira, onde o velho Portugal, um dia, se despedira, no mar, das suas velhas formas reais.

Com Maria Amélia partiu uma parte importante de mim, como deverão sentir, do mesmo modo, todos os que a conheceram. Os grandes mestres são filhos da sombra e só a luz os banha, depois do irremediável, mas isso é completamente desinteressante, porque as pessoas radiosas apenas aguardam a sua arrumação celeste, e poucos lamentos esperam, da transitoriedade terrestre. Apenas a nota de que a Natureza é injusta, ao conceder, como última visão de um ser profundamente humano, e ligado aos sentidos, às águas, às florestas e aos seres vivos dos arbustos rasteiros, o retângulo melancólico de uma janela de hospital, e é por isso que temos de ir, imediatamente, mais alto.

Maria Amélia partiu com o verão, onde o nosso hemisfério quente é pobre de estrelas: só Altair cintila, na Águia, enquanto Algol, fulminante, nos atrai o olhar. As estrelas errantes conjugam-se, nos nomes de Júpiter, Úrano e Marte, assombrosamente perto de nós, para todas as invejas de Rigel. A Lua impera. Ao contrário de Penélope, todas as noites, Maria Amélia repunha, no seu tear da divina gastronomia, o que os seus apaixonados volatilizavam, como uma infinita chuva de Leónidas. Como em Monteverdi, "torna il tranquilìo al mare, torna il zeffiro al prato, l'aurora mentre al sol fa dolce invito a un ritorno del dì ch'è pria partito. Tornan le brine in terra, tornano al centro i sassi, e con lubrici passi, torna all'oceano il rivo. L'huomo quaggiù ch'è vivo lunge da' suoi principi porta un'alma celeste e un corpo frale; tosto more il mortale, e torna l'alma in cielo, e torna il corpo in polve, dopo breve soggiorno".

E, assim, ascenderemos agora ao zénite, aos patamares de Maria Amélia, onde Deneb, pontificando no Cisne, assiste aos deuses que fletem o arco, e, como numa estonteante estrela ascendente, a corda é brutalmente solta, numa harmonia de Esferas, lançando-a até um inconcebível horizonte, para integrar esse oceano estelado, onde todos os que muito a amámos, num dia, nos voltaremos a sentar, para com ela cear, com o mesmo sorriso cúmplice, e aquela afetividade sublime.

Até sempre, Maria Amélia.
 
 

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