domingo, 18 de novembro de 2012

conto da rapariga que cantava para adormecer

Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas

 
Estava sozinha na paragem do autocarro. À sua frente, uma folha de papel de jornal abandonada ao vento da manhã ainda noite. Subia, girava, dobrava-se, revolteava, as letras pretas pareciam escorregar mas agarravam-se ao fio das notícias, à paginação definida e ela a olhar. Uma rajada mais forte fê-la subir até aos ramos mais baixos dos plátanos, os pássaros nos ninhos não sabiam ler e a folha fez um som seco de madeira de barco quando o sol lhe bate, mas chuviscava ali. Folha com folha, a de jornal e a de plátano e a rapariga sentada. Sobre os joelhos um saco de lona, a saia curta, os ténis, o desalinho da idade. Junto ao pescoço a blusa antiquada, os botões a fechar casas, uma timidez de outro século. Era uma rapariga em duas, mas isso não significava nada ali na paragem de autocarro. Os minutos passavam, a chuva engrossou, a folha de jornal deixara de dançar e quando o autocarro se aproximou a rapariga levantou-se devagar, estendeu o braço, dobrou ligeiramente o pé direito e a saia rodou.
O destino poderá ser a praça da alegria, os prazeres, os mártires, a estrela, a graça, o coração de jesus, as necessidades, a rua do ouro, o alto dos moinhos. De antemão não se sabe. Ela fechou os olhos e o motorista gritou - Em direção à lapa! Era o destino certo nesse dia, a lapa onde gostava de se esconder, invisível, transparente, à procura das gotas de água, dos cogumelos venenosos, das rãs.
Então? disse o homem – despacha-te, não temos o dia todo - e arrancou ruidosamente.
Na segunda paragem entrou um coelho preto e branco com uma papoila ao peito, na terceira, um gato branco e preto sem papoila. A rapariga viajava junto à janela e ia contando os candeeiros de rua que tinham as lâmpadas fundidas àquela hora da manhã. Contou dezasseis e na vigésima paragem entrou um homem com uma cartola preta e veio sentar-se a seu lado. Vestia umas calças de ganga e uma camisola de algodão, tinha um sorriso largo, o nariz perfeito e a cartola destoava. Não parecia dele. A rapariga olhou-o desconfiada e o homem disse-lhe, dormem pássaros no meu chapéu. Ela riu-se e acreditou.
Na última paragem antes de chegarem ao destino a rapariga puxou-lhe a manga da camisola e disse-lhe baixinho, eu não durmo.
 

2 Responses so far.

  1. .

    .

    . a.cima . de quais.quer sonhos .

    .

    .

  2. Belas palavras do vento, num mundo mais profundo.
    Belas pausas do sol,
    com o desolado mundo,
    insistindo em perfilar-se
    desgastado
    ao fundo

 
 

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