domingo, 16 de dezembro de 2012

as mãos de Haru

Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas
Apagou o fogo da lareira, fechou as janelas e a porta, soltou o búfalo e partiram, o homem e o cão. Às costas, sustentado por cordas de sisal, o cesto de vime, um pão, um peixe, uma esteira, uma manta de lã. Junto ao peito, o pássaro pintado num tecido de seda pura. Caminhava ágil, porque leve é a seda e o coração de quem procura e procurando está certo de encontrar.
Não olhou para trás uma só vez, mas sabia as casas e os campos a diminuírem de tamanho, o fumo nas chaminés, o aceno dos vizinhos. Passou os arrozais e as plantações de soja, escolheu o caminho da direita e o atalho da esquerda e chegado ao cimo de um monte descansou. Talvez nevasse nessa noite, sentia-o pelo cheiro da terra e do ar. Preparou um abrigo para ele e para o cão, acendeu o lume e assou o peixe.
O céu tinha a limpidez de um azul escuro profundo e abismal e em intervalos regulares era atravessado por cadentes estrelas. O homem deslumbrado calava-se, acariciando a cabeça do cão.
Tão pouco eu sabia deste mundo, murmurou. E eis-me diante de tamanha beleza e eu apenas procuro quem me desenhe nas sedas um pássaro como tu, para que eu possa partilhar com os meus amigos os sonhos que me dás todos os dias da minha vida. E colocava a mão sobre o peito e o pássaro desdobrava-se em piados de assentimento.
Assim atravessou três cidades, duas cordilheiras e muitos arrozais e já todos falavam do homem que transportava um cesto de vime em busca de um pintor de pássaros de seda.
Foram muitas as falsas pistas que lhe deram, umas por escárnio e malquerer, outras por inocente acreditar. Mas nunca o homem tirou do peito o seu pássaro, porque sabia da inveja de alguns e da hipocrisia de muitos.
Uma noite chegaram a uma aldeia e tinha sede o homem e fome o cão e entre bambus e magnólias viram luz numa janela e tal era o cansaço que traziam que adormeceu o homem nos degraus da entrada e o cão ladrou de medo e inquietação.
Haru era o nome do homem.
Tinha um pátio onde crescia uma velha cerejeira, uma casa habitada pela límpida luz da manhã, tintas, pincéis e uns dedos mágicos que davam vida a tudo o que pintasse. Se ele imaginasse uma rapariga com brincos e túnica encarnada, pegava num pincel e criava as pérolas, as orelhas, a boca, os olhos, a túnica encarnada. A rapariga ganharia movimento e sairia da tela se ele desejasse.
O pátio, a casa e a cerejeira eram rodeados por três muros baixos porque Haru acreditava na ineficácia dos portões de ferro e das muralhas que escondendo nos escondem, tornando-nos vulneráveis e presas fáceis da cobiça e do ódio. Não era preciso tocar o sino para entrar, nem fechar a porta para sair. Aquele pátio chamava-se das cerejeiras, mas restava apenas uma, porque velhas eram essas árvores e Haru com elas, na sabedoria da natureza efémera da vida e dos rebentos na primavera. Quando brotavam, as flores duravam apenas sete dias e depois morriam e a cada ano Haru estava atento ao primeiro botão, que seria flor, esplendor e logo memória. E para que assim permanecessem, pintava-as, rosa forte e pétalas delicadas. Depois dizia, fiquem! e espalhava as telas pela casa.
Quando o cão uivou lá fora Haru assustou-se e acorreu à porta que permanecia aberta e arrastou o homem adormecido até à sua cama, afagou o cão e deu-lhe uma tigela de arroz com frango e ao ver o cesto de vime e os panos de seda pensou, é ele, o homem que busca um pintor de sedas.
E esperou pacientemente que acordasse.
Haru não sabia do tecido de seda pura guardado junto ao peito, mas ali sentado na quietude da noite olhou as suas duas mãos e desejou ter o poder de fazer voar os pássaros.
 
 

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