Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas
Sentava-se sempre no mesmo banco à janela, do lado do
mar, os outros passageiros de costas para si.
Sem pressas, retirava da pasta um bloco de desenho A3 e
um lápis de carvão e observava as pessoas, contemplava-as, por fim elegia uma e
o jovem desenhava, rápido, certeiro, luz e sombra em cada manhã.
De costas, de perfil, um pescoço fino ligeiramente inclinado,
a beleza de uma nuca, as rugas de um rosto, um sorriso, pálpebras cerradas num
dormitar sereno.
Quem ficava perto dele pasmava com o seu talento,
cúmplice daquele elo de ligação entre o criador e o objeto criado, porque os
modelos, esses, viajavam na ignorância de que eram inspiradores de arte.
Quando ainda lhe sobrava tempo, virava a folha e esboçava
outro rosto, até à última estação. Os passageiros saíam apressados e o rapaz
ficava para o fim. Era desajeitado, segurava o bloco, o lápis, o casaco e de
joelhos no chão da gare retirava da pasta uma lata de laca e fixava os momentos
aprisionados durante a viagem.
Um dia uma rapariga protestou e ali no meio de todos
repetia:
- Era só o que faltava, este gajo é doido, a desenhar os
outros. Eu não lhe dei autorização.
Falava muito alto, respirava vulgaridade e agressividade.
Uns diziam, tem toda a razão. Alguém observou, mas está
bonito. E ninguém parecia ter pressa.
O rapaz, acossado, continuava de joelhos, a lata na mão.
Então de um golpe separou a folha do bloco e entregou-a à rapariga, feia, mal
vestida, agressiva e vulgar e disse baixinho, peço desculpa é seu.
Na folha A3, desenhado a lápis de carvão, o perfil daquela
rapariga. Do pescoço, uma curva perfeita; dos olhos, um
caminho de luz; do nariz, o equilíbrio entre a estrutura do osso e o sombreado
da pele, aprisionado o momento único, em que uma rapariga feia, mal vestida,
agressiva e vulgar se transfigurou.
-Esta, não sou eu!
E rasgou a folha do bloco A3 com o seu retrato a carvão.