Eu passei a
oitava série sozinho. Para começar, já me achava absolutamente estranho. Eu
cresci muito rápido e fiquei gigante, aos 13 anos. Minhas roupas ficaram curtas
e ridículas, para o riso dos colegas. Sem ter nenhum adulto por perto, tive que
aprender a fazer a barba sozinho. Até hoje não sei fazer a barba direito nem
gosto de fazer a barba. Também não gosto de ficar barbudo. Fiquei corcunda.
Meus cabelos eram gigantes e horríveis. Tinha espinhas no rosto e os colegas me
diziam que espinhas eram provocadas por excesso de masturbação.
Eu não
falava com ninguém. Sofria bullings violentos dos colegas, até mesmo agressões
físicas ou banhos de refrigerantes que me davam vontade de morrer. Aos 13 anos,
pensei em suicídio pela primeira vez por culpa disto. Foi uma vingança do mundo
contra o fato de eu mesmo ter praticado bulling contra um garoto negro, quando
eu tinha uns 10 anos. O garoto gostava de mim, me tratava como amigo, e eu
praticava bulling racial nele do mesmo jeito. Eu e a escola inteira. Era o
único garoto negro da escola.
Mas, na
oitava série, eu tinha uma certa admiração por um garoto mais velho chamado
João (que também catou a Helena, como todo mundo). Eu queria ser igual ao João.
Ele era maluco, comportava-se como imbecil, e a escola inteira gostava dele.
Ele tirava sarro até da diretora. Imagine tirar sarro da diretora da escola e
ela dar risada. João era uma espécie de Deus. Ele desenhava caminhões. Comecei
a desenhar caminhões, caminhonetes, carros. Achei que mexer com automóveis era algo
mais suburbano e possível e não ser artista. Eletrônica também me interessava.
Comprei todo o curso de eletrônica do Instituto Universal Brasileiro e esta
poderia ter sido minha primeira profissão. Mas não li mais do que um ou dois
livros, por pura preguiça. Eu sempre fui um caso perdido.
Chegou o
pior dia da minha vida, que me transformou neste monstro que sou até hoje e
serei para sempre.
Dona
Arionor, a diretora e dona da escola, entra com seus 3 metros de altura (para
nós, crianças, Dona Arionor parecia uma gigante) e diz: “O Brasil precisa de
técnicos. Façam cursos técnicos”. Ela tinha visto na tv reportagens em que os
militares diziam que o Brasil precisava de técnicos. E como eram os militares
que estavam dizendo, Dona Arionor repetia para a classe. O Educandário Nossa
Senhora do Carmo era plenamente a favor da ditadura militar no Brasil. Aliás, o
marido de Dona Arionor, seu Gilberto, era militar. Acho que ele era policial
militar. Lula assustava Dona Arionor. Sem motivo nenhum, houve um dia em que
ela entrou na classe, e sabe-se lá por qual propósito, começou a xingar o Lula,
dizendo que ele era “um bicho”. Eu fiquei fã do Lula no mesmo instante.
Jesus
Cristo, eu quis muito ter faltado aquela aula em que Dona Arionor
nos mandou fazer cursos técnicos. Uma criança de 13 anos não sabe o que quer da
vida. Ela não tem como escolher qual curso técnico quer fazer na vida, porque
não sabe qual profissão vai seguir.
Mas todos
nós da classe decidimos prestar o exame para a Escola Técnica Federal de São
Paulo e eu iria tentar ser técnico em mecânica. De automóveis, de preferência.
No dia do
exame, ganhei uma régua da Escola Técnica São Francisco de Bórgia. Guardei-a. O
exame pareceu ser em outra língua. Não acertei uma questão sequer. Senti-me
como se tivesse perdido oito anos de minha vida estudando no Educandário Nossa
Senhora do Carmo. E não adiantava dizer que os alunos é que eram dementes
porque ao saber que seus alunos não haviam acertado uma questão sequer do exame
da Escola Técnica Federal de São Paulo, Dona Arionor decidiu reformular o
currículo inteirinho.
Chegou 1985
e me lembro que os adultos me mandaram fazer um corte de cabelo ridículo que
estava na moda. Com este corte de cabelo, matriculei-me num outro lixo de
escola, a São Francisco de Bórgia.
Não sei
como é que me deixaram estudar naquele lugar. A escola, que ficava no Paraíso e
portanto eu tinha que pegar ônibus e metrô para chegar até lá, no maior tédio,
não tinha nem sede, ocupando salas alugadas de um colégio burguês chamado
Benjamim Constant, com cujos alunos não trocamos uma palavra sequer durante um
ano. Para mim, aqueles alunos pareciam tão burgueses que não eram nem humanos.
Tomei outra
decisão importantíssima para meu futuro profissional: entrei no curso de
datilografia do SENAC. Só um imbecil como eu para resolver fazer curso de datilografia
e não de informática. Ou música. Sei lá por qual motivo eu quis aprender a
bater à máquina. Talvez porque tivesse já feito uma experiência com alguma
máquina de escrever e tivesse gostado muito. Quem sabe não começasse a escrever
assim? Por sinal, foi em 1985 que minha mãe comprou uma pequena máquina de
escrever. Acho que só fui a duas aulas de datilografia e, naturalmente,
abandonei.
Um fator
iria colocar à prova minha decisão de fazer curso técnico em mecânica na escola
deprimente do Paraíso: meu pai estava trabalhando como gerente de cinema no
circuito CIC e bem naquela época estava gerenciando o cine Gemini, na Avenida
Paulista, pertinho da escola. Já conto como foi o primeiro dia trágico em que
tentei visitar meu pai.
Antes vou
contar sobre outra loira em minha vida: Eliane.
No primeiro
dia de aula, estou no pátio deprimente da escola deprimente, esperando começar
a aula de educação física, que seria a primeira aula da escola. Estou, como
sempre tímido, isolado do resto da humanidade. A minha frente senta-se Eliane,
que não desgruda os olhos de mim e até sorri.
No dia
seguinte, ela está andando ao lado de um dos colegas. Dois dias depois, está
andando ao lado de outro. No terceiro dia, me pede para sentar ao seu lado.
Caramba, no primeiro grau ninguém ficava com ninguém e no segundo grau, já na
primeira semana Eliane queria catar três caras?
Sentei ao
lado dela e não soube o que fazer. Pior, em certo momento fui retirar uma
página do meu caderno e dei um soco na cabeça dela. Idiota, ao invés de pedir
desculpas, fiquei dando risada. Eliane perdeu o interesse em mim imediatamente.
Mas passei
o ano inteirinho sofrendo de amor por ela e cheguei a lhe escrever umas
cartinhas, que ela gostava muito. Mesmo assim, só me considerava amiguinho.
Fui um
aluno médio, como no primeiro grau.
Nas aulas
de português, descobri a poesia. Por algum motivo, a professora, que era chata
pra caramba, nos ensinou a poesia brasileira inteirinha no primeiro ano. Não
porque fosse uma ordem curricular da escola. Mas porque ela só se interessava
por literatura brasileira mesmo e não podia ouvir falar em estrangeiros que
dava chilique. Porém, não adotou nenhum
livro e achei isto bem estranho. Eu estava doido para ler alguma coisa, mas a
escola não pediu para lermos nada, só para provar mais uma vez que era uma
merda de escola.
O primeiro
ano foi genérico e super entediante. Descobri uma coisa que não pratiquei no
primeiro grau: cabular aulas. No primeiro grau, eu não faltava à aula alguma.
No segundo grau, virou bagunça. Eu não perdia oportunidade alguma de não ir à
escola e sair para passear com os colegas. Mas eram todos caretas. Ninguém
usava drogas, nem fumavam nem bebiam. Muito pelo contrário. Havia um certo
culto ao corpo, com alunos fazendo musculação e artes marciais. No lugar de
drogas, cigarro e bebidas, enchíamos a cara de esfihas do Jaber e café
espresso. Mas eu sempre gostei de beber. Naquele ano de 1985, não cheguei a
beber, mas havia bebido desde os 10 anos de idade, havia bebido em festas
juninas, havia bebido em casa às escondidas. Aproveitava todas as
oportunidades.
Que mais de
interessante aconteceu em 1985? Além de ter me masturbado numa sala de aula
vazia?
Quando
chegou o fim do ano, fizemos uma festinha. Eu estava determinado a tentar
beijar Eliane, naquele último dia de aula, aproveitando o fato de que ela me
disse que não estava namorando com ninguém. Eu estava até escrevendo sobre
isto, na minha máquina de escrever, imaginando que iria terminar o ano
relacionando-me com ela. Foi meu primeiro de muitos textos autobiográficos,
sendo que este ainda era meio fictício. Portanto, era minha primeira
auto-ficção.
Logo que
ela chegou, já chamei-a de canto e disse: “Se eu pedir algo, você me dá?”.
“Dou”. Ela sabia o que eu queria. Mas não tive coragem de falar. Ela ficou a
tarde inteira implorando para que eu dissesse, mas não consegui dizer. Eu era
um caso psiquiátrico.
Minha mãe,
naquele ano, me obrigou a fazer minha primeira entrevista de emprego, no banco
Noroeste (que hoje é o Santander). Fiquei tão tímido que quase não entrei.
Telefonei para minha mãe, no caminho, dizendo que eu não conseguia ir e ela
insistiu para que eu fosse. Tomei coragem e fui.
Sentei-me
junto com outros adolescentes e por sorte eu fui um dos últimos questionados
pela entrevistadora, porque ela perguntou qual era a função para qual estávamos
nos candidatando. Se ela tivesse me perguntado primeiro, eu teria dito que não
sabia. Mas como vi os outros adolescentes dizendo que estavam se candidatando
às vagas de contínuo, falei isto também. Eu nem sabia o que era um contínuo.
Nunca fui chamado para trabalhar no Noroeste, o que prejudicou muito minha
auto-estima. Eu não era capaz de arranjar uma bosta de emprego de contínuo por
qual motivo?
Minha
diversão predileta era ir ao cinema.
Porém, na
primeira vez em que fui, o interplanetário meu pai não me reconheceu. Fiquei
parado na frente do cinema, esperando ele resolver falar comigo e embora ele
tenha passado por mim várias vezes, não me dirigiu a palavra. Segundo ele, por
não ter me reconhecido. Como é que um pai não reconhece o próprio filho? Mas
depois, virei freguês. Assisti a um milhão de filmes, no Gemini, Metro e
Comodoro. E foi assistindo a um dos filmes, “2010 – O ano em que faremos
contato”, de Peter Hyams, que decidi ser diretor de cinema. E mais do que isto:
decidi que embora o mundo da mecânica me parecesse fascinante, não era aquilo
que eu queria para minha vida.
Mas a música ainda era uma possibilidade. Meu amigo Álvaro
Sobral me disse que estava estudando violão e me mandou aprender guitarra para
montarmos uma banda. Ele iria começar a estudar baixo. Menti para ele que
estava fazendo umas letras. Ele começou a cobrar minhas letras, colocando-me
numa situação difícil. O máximo que tinha escrito aos 14 anos foi um soneto
pornográfico chamado “Sonhos de um punheteiro”, que escrevi após um amigo da
classe me emprestar a Playboy com a Sônia Braga, que me enlouqueceu
completamente. Mas minha mãe achou meu soneto, fiquei morrendo de vergonha e
joguei fora.
(continua)
(gostou? quer ler mais? escreva para papoy3@gmail.com)