Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas
The Book Club de Maggie Taylor
Chamava-se Laura. Escolheu-me o nome e
quando eu cresci cinco anos e ela dez, jurou-me amor eterno. Eu acreditei na
ingenuidade da infância e nos dias felizes e se escrever estivesse na minha
natureza, escreveria. Mas não está.
A
memória habita um lugar que nada tem de estranho ou indefinido. Momentaneamente
adormecida e logo acordada, uma tecla repercute, multiplica os acordes.
Todos
lhe chamavam a casa do piano e era uma divisão espaçosa ao fundo do corredor
onde se despejava o que já ninguém queria ou não fazia falta ou sobrava ou
magoava, uma recordação dos mortos, uma lembrança dos vivos. E lá estava o
piano, vertical, ainda afinado e cuidado, mas silencioso guardador de segredos.
As
tardes acalmavam, os mais velhos esqueciam-se de mim, deixavam-me sossegado e eu,
sombra, caule flexível, criança invisível, deslizava insonoro pela porta
entreaberta e entrava. Uma camada de poeira fina cobria os objetos, a luz do
sol fazia um carreiro entre os vidros das janelas e o chão e o cheiro das maçãs
guardadas em cestos entonteciam-me de outono e cidra. Em cima de uma velha
secretária, um pesa-papéis que me fascinava. Imaginava-o valioso, quebrável,
frágil. Pegava nele e entre o receio de o partir, desejava intimamente
desfazê-lo para entender aqueles planos de vidro, os filamentos, os olhinhos de
boneca antiga. E se por um acaso alguém viesse a descobrir, dizer, fui eu sem
querer, querendo.
Depois
abria a caixa do comboio elétrico e soletrava: Märklin e sentia uma enorme
admiração por esta palavra possuidora de um tal comboio. Armava os carris, as
curvas à esquerda e as curvas à direita, as retas, as carruagens, a máquina, os
vagões de mercadorias e o velho transformador funcionava e o comboio seguia
veloz entre as árvores e as casas pequeninas, parava nas passagens de nível com
guarda e nos montes imaginados pastavam carneiros de barro, numa confusão
infantil entre presépios e apeadeiros.
Quando
a luz enfraquecia nas vidraças e o ruído da locomotiva subia de tom, Laura
esgueirava-se pela porta da casa do piano e trazia-me o lanche. Sentávamo-nos
no chão e molhávamos biscoitos de manteiga nos copos de leite e o riso era
cúmplice e adocicado. Se não havia mais ninguém pela casa ela deixava-me
levantar a tampa do piano e brincar com os sons. Abria então o baú dos chapéus
antigos e das cabeleiras, escolhia o mais louco, fazia uma vénia, sentava-me na
banqueta forrada de veludo encarnado e com toda a força compunha uma canção
alegre. Fora do tom. O piano melindrava-se mas eu não dava por isso.
E
raramente, muito raramente, cresciam nos seus olhos as sombras da noite e o
riso afogava-se no copo de leite. Laura pegava numa chave pequena presa a uma
fita de seda cor-de-rosa e abria uma das gavetas da secretária. De lá saíam
quadrados de papel de muitas cores e ela dobrava-os e dobrando desdobrava-se na
arte dos dedos finos e dos vincos do rosto e eu aprendi tanto, que um dia dobrei
um cavalo branco e galopei janela fora, insonoro e invisível.
primeira voz: Laura
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. e hoje . todos os caminhos que não sejam veredas . têm como destino . "The Braganza Mothers" . :) .
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. belíssimo . manu.ela.de.elo .
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Congratulo-me pela mudança da hora! Se por um lado regressaste ao brilhantismo da tua escrita de outrora, Manuela, por outro, já cheira a Natal!
talvez o primeiro tronco na lareira e um traço de canela no arroz, doce
:)
Maravilhoso conto. Felizmente sou magra, mal seria que tivesse de se enterrada um dia num piano, agora Natal... ainda não sei, para mim, é um outono de pegadas negras na minha passareca,
benzó-deus...
pelo número de horas deste dia, eu diria que já ultrapassámos o Natal