domingo, 30 de abril de 2017

pimenta do reino e açafrão

Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas

E por fim riu-se. Num gesto ainda bonito, atirou para trás os cabelos pretos azeviche, lustrosos como veludo, pegou no saco e desceu as escadas a correr. Eu acenei-lhe e pensei na impossibilidade de duas pessoas tão diferentes conseguirem ser iguais. Às vezes estamos mais de um ano sem nos vermos e a conversa é reatada no ponto em que ficou e rapidamente unimos os pontos separados e os outros que pintamos por aí. Fazem uma linha.
Ela pergunta, lembras-te daquela casa com um portal, duas colunas, a varanda toda à volta e os espanta espíritos que afinal não espantavam nada e até atraíam os morcegos? Lembro-me. Da cozinha negra de carvão, as vasilhas de cobre, o poço? Também. Dos macacos zangados a arrancar telhas, da chuva forte, dir-se-ia eterna, do cheiro da terra. E do rio ao fim do dia? Sim. Divertimo-nos como loucas. Pois foi. Quem diria este tempo desapiedado que estamos a viver agora.
O vendedor de açafrão tem duas filhas esguias como juncos, os cabelos presos numa trança. Um dia rolou um grão de mostarda pelo colo de uma e um grão de pimenta pelo colo da outra. O pai zangado ordenou-lhes, procurem os grãos perdidos, pois um não é nada sem o outro e é com eles que eu encho os sacos para levar ao mercado e compro o arroz que cozinhamos à ceia.
As filhas, esguias como juncos e sensíveis como asas de borboleta, desfizeram as tranças e soltaram os cabelos e as lágrimas e estas eram grãos de água transparente. Procuraram debaixo da mesa, nas gavetas, nas traves do teto, na rua, no mercado, no templo, entre a areia da praia. E as filhas esguias como juncos, sensíveis como asas de borboleta, frágeis como a lua nova, cansadas, adormeceram.  
Desço atrás dela e apanhamos jarros, margaridas e uma braçada de hortelã. Na cidade as flores estão-lhe distantes e há pouco ar em redor das casas.
Os jarros não gostam que se lhes corte o pé. Vingam-se, largando um líquido castanho que põe nódoas na roupa. Assim nunca mais nos esquecemos.
Foi então que dos sonhos das filhas do vendedor de açafrão surgiu uma ave rara e abriu a sua enorme cauda, estendeu o bico e largou na almofada do pai dois grãos, um de mostarda e outro de pimenta. Depois pegou nas raparigas esguias como juncos e levou-as para um reino distante.
 
 

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