Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas
Um dia, crescem-vos algas nos pés.
Chegavam cedo, ainda a areia não tinha secado da praia
mar e os toldos quietos à espera da sombra. Os calções, às riscas amarelas e
brancas num, brancas e amarelas no outro. Os olhos vivos de descobrir mundos,
as pernas inquietas de correr riscos.
Não se afastem.
Passava um barco e sentavam-se na rocha grande e eles
pequenos no fresco da água. O reflexo restituía-lhes as duas faces quase iguais
e as caretas e os trejeitos e eles riam-se.
Afastavam-se. Descobriam ouriços, anémonas, caranguejos,
lapas e burriés. Guardavam as conchas nos panamás brancos a pingar sal. Os
dedos das mãos ficavam engelhados e o queixo tremia de frio. O homem dos
gelados perguntava: e hoje, quem é o menino? é ele, respondiam, apontando um
para o outro.
Ao décimo dia já sabiam mergulhar e nadar. Ao décimo
primeiro abriram os olhos debaixo de água, exímios a expulsar o anidrido
carbónico, a serenar a necessidade absoluta de oxigénio, a pairar sem oferecer
luta à impulsão. Foi então que os viram. Pequeninos, lentos, as caudas
enroladas num farrapo de alga, as barbatanas dorsais numa aceleração louca, o
focinho tubular. Os rapazes suspensos e trémulos de espanto permaneceram
submersos, os olhos bem abertos, os braços e as pernas como barbatanas contidas
e os cavalos-marinhos soltaram-se e enrolaram-se-lhes nos cabelos e dir-se-iam
filamentos de luz encaracolada a dançar.
Guardaram segredo, miméticos, cúmplices. Depois do
equinócio cresceram-lhes algas nos pés.
Há noites na cidade à espera do outono em que eles
amarinham, pequeninos, lentos, o focinho tubular, as caudas aneladas a um fio
de cabelo e matam saudades dos rapazes aquáticos que guardavam conchas com água
do mar.
Não se afastem, o ruído noturno assemelha-se a um
marulhar.
uma revisitação .intemporal.