O café deve ser forte, arábica para aguentar, o açúcar
mascavado e o limão acabado de apanhar. Debaixo de um jacto de água da
torneira, lava-se bem para tirar a caca dos pássaros e as teias de aranha,
pega-se numa faca afiada e na tábua da cozinha cortam-se rodelas finas e
milimetricamente semelhantes. O gelo laminado. Não interessa como. Pode sair de
um frigorífico moderno que nos entrega a água já gelada, capaz de catalogar as
caixas de congelação, de as identificar sem misturar a base da sopa de cenoura
com a carne à bolonhesa. Alguns também são ecológicos, poupam energia e possuem
várias memórias de conversação consoante sejam invadidos pelas crianças em
busca de sumos ou pelo avô que guarda a garrafa do whisky de malte escondida na
gaveta dos legumes. Os mais educados são caríssimos, mas agradecem sempre que fechamos
a porta com o pé e esta bate sem que o consigamos controlar. Na falta deste
modelo, serve um martelo e um saco de plástico resistente. Neste caso o gelo
não sairá laminado, mas lascado, que é aquela forma como às vezes nos sentimos
ainda o verão mal começou.
O gesto de bater no gelo não é isento de perigos e os dedos
mais frágeis são o anelar e o mindinho seu vizinho, com quem gostamos de
partilhar o limoeiro.
O segredo está na proporção talentosa dos elementos, o
café, a água gelada, o açúcar, o gelo, as rodelas de limão. Mistura-se com uma
vareta num jarro de vidro azulado translúcido para brigar com o amarelo branco
preto limão.
Bebe-se pausadamente ou só de um trago e o sabor será
igual.
Entre o factual e o imaginado a luz refrata-se no jarro
de vidro azulado e o pássaro da tarde já cantou. Coloco então o limoeiro
debaixo do braço e vou por aí acidular.