domingo, 18 de março de 2012

O Não-Saber - I

O NÃO-SABER

Conto de Rynaldo Papoy

I

"Eu que pensara que a maior prova de transmutação de mim em mim mesma seria botar na boca a massa branca da barata. E que assim me aproximaria do... divino? do que é real? O divino para mim é o real." [Clarice Lispector].

Transformei-me num ser contrário ao que desejei ser.
Cheguei a pisar no degrau da prosperidade, mas o homem é mais frágil que seus vícios.
Naquela noite chuvosa de sábado de outubro, pulei o muro da fábrica abandonada da Vila Formosa, achei um canto podre qualquer, onde, acompanhado por baratas, ratos e animais que não pude reconhecer, mas que me pareceram superiores a mim, sentei no chão e encostei-me na parede.
Iniciei os delírios próprios da fome. Sentia um aroma de espaguete com molho de salsicha e batatas e aquilo me irritava.
Em seguida, o que me pareceu alucinação mostrou que não era.
Uma sombra de um homem alto. Parado, na estrada daquela sala, com as mãos nos bolsos. Ficou um tempo enorme deste jeito. E caminhou em minha direção.
Quando estava bem a minha frente, pude ver seu rosto.
Era jovem, bonito. Tinha cabelos lisos loiros e penetrantes olhos azuis.
Usava um terno e um espetacular sobretudo de couro, como se fosse um oficial nazista.
Ele me lançou um meio sorriso:
- Quer ser meu amigo? – perguntou.
Dei de ombros. Naquele momento, seria qualquer coisa.
- No momento, conforte-se com algo que há a seu lado.
Virou-se e foi embora.
A minha esquerda, uma carteira executiva. Abri-a. Contei vinte notas de cem reais.
Pensei: “Obrigado, Deus”, sem saber que eu estava enganado.
Com o restante de minha classe, entrei num mercado e fiz compras. Só para trocar o dinheiro. Não iria dar cem reais num ônibus.
Mas entrei num ônibus cujo destino era uma estação do metrô, carregando seis sacolas cheias de produtos, na maioria, comestíveis.
Retirei um saco de batatas fritas e quase comi a embalagem junto. Peguei o metrô, mas nem sabia em que estação descer.
Desci na estação República e caminhei em direção ao Largo do Arouche. Entrei num hotel e pedi um quarto. Paguei sete dias antecipadamente e lá se foram 350 reais. Poderia ter economizado, mas, naquele momento, só queria descansar. Subi pelo elevador, deixando para trás o olhar surpreso do recepcionista.
Deitei na cama, após um banho de uma hora.
Eu não possuía roupa limpa alguma.
Comi sanduíches e tomei cerveja, assistindo TV, com o ar condicionado ligado. Estava um conforto só.
Dormi.
Tive um terrível pesadelo.
Eu estava andando por uma fábrica abandonada, arrependido de ter entrado ali e tentava achar a saída. Caí num poço repleto de gelo e tentava sair, congelado.
Acordei num sobressalto, realmente morrendo de frio. O cobertor estava caído ao chão.
Estava amanhecendo e o tempo ainda estava ruim.
Não pude mais pegar no sono. Mesmo assim, deitei minha cabeça no travesseiro e olhei para o teto.
Senti meu corpo.
Minhas pernas e costas doíam de cansaço, mas após nove ou dez horas de sono, eu estava relaxado.
Meu quarto de hotel, aliás, apartamento, era simples, mas muito bem cuidado, apesar de ser um típico hotel voltado para encontros amorosos, com espelho no teto e várias lâmpadas controladas por interruptores na cabeceira. Ao lado da cama, havia um cardápio que incluía camisinhas e vaselina. Vaselina? Por que não gel lubrificante?
Troquei os canais de TV e achei um que exibia um filme de sexo explícito. Logo troquei de canal. Não estava disposto a apreciar corpos femininos nus. Aliás, estava, naquela época, com verdadeiro nojo de mulheres.
 
 

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