domingo, 13 de janeiro de 2013

o pássaro do coração

Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas




Hoshi abriu a túnica, retirou do peito o tecido dobrado em quatro, pegou em duas pontas e soltou-o. O pássaro pintado era tão real e tão belo que o velho Haru deu um grito de espanto. Nunca tal vira e sabia de antemão que não seria capaz de reproduzir uma ave assim e se isso viesse a acontecer correria o risco de replicar o irreplicável, de tocar o intocável, de agitar o que jamais deveria ser agitado.
Mas os olhos de Hoshi brilhavam de alegria e tão simplesmente lhe contava dos trezentos e vinte cinco panos guardados no cesto de vime e das moedas que juntara para os comprar e de como seria bom se todos os habitantes da sua aldeia tivessem um pássaro raro a ondear nas janelas, que Haru, o pintor a quem os deuses bafejaram as mãos com um dom inigualável, calava-se e calando consentia num sonho mais alto que as montanhas geladas a norte da sua casa.
Hoshi era jovem, impulsivo, corajoso e generoso. Haru era velho, bondoso e talentoso e no pátio brotou um segundo rebento de cerejeira e ele ousou dizer sentindo o coração descompassado: temos sete dias para transformar os teus panos e outras tantas noites para soltar os teus pássaros. Aprenderás tu a pintá-los, porque se as tuas mãos calejadas fazem crescer os arrozais e penetrar na terra o arado, também se transformam em veludo quando acaricias a cabeça do teu cão.
No primeiro dia madrugaram e atravessaram as florestas de tílias, a ponte sobre o rio gelado. Colhiam pedaços pequenos dos ramos mais frágeis e com um canivete afiado faziam os cabos dos pincéis, as cerdas de marta. Pediram conselho aos monges que conheciam os segredos dos corantes naturais e da textura das sedas e aprenderam a esticar os panos em esquadrias de madeira. Ao entardecer eram quatro as crianças que os seguiam e quando o sol se escondeu no horizonte, entraram no pátio doze rapazes e dez raparigas ansiosos por aprender a arte dos tecidos.
Nessa noite ficaram mais leves os sacos de arroz na despensa de Haru na proporção inversa ao ânimo que sentia.
Ao segundo dos dias o galo cantou e nas cozinhas as avós fritaram bolinhas de carne e de arroz e prepararam taças de chá verde e sopa de Miso.
O açafrão, a terra, o barro, as ervas esmagadas, a gema dos ovos. E os tecidos resplandeciam.
No terceiro, quarto, quinto e sexto dia eram tantas as crianças sentadas em silêncio junto ao pátio de Haru que este se assustava perguntando como é que eu aqui cheguei e eles comigo?
Todas as noites Tsuru o pássaro, largava o tecido que habitava e voava sobre as cabeças adormecidas. Fazia rir as crianças nos seus sonhos, desinquietava os jovens, soprava telas e tintas nos cabelos brancos de Haru e transportava Hoshi nas suas asas até ao reino dos peixes e das baleias brancas onde ele nadava nu como só ele sabia.
Na tarde do sétimo dia caiu a flor da cerejeira e todos os panos de seda secavam ao sol, mas em nenhum deles se via um pássaro de longo bico como Tsuru. Uma criança reconhecendo o tecido que pintara, gritou, essa é a minha mãe! e todas as outras, a casa do meu avô, a escola, o rio, a ponte, o céu, o cume da montanha.
Não se desiludiram nem entristeceram os dois homens e Hoshi disse, é tempo de eu partir. Esperam-me os arrozais, o búfalo, o arado, a minha casa, a minha aldeia e os meus amigos e a cada um darei um tecido de seda pura.
É tempo de eu ficar, disse Haru, retomar a ciência das minhas mãos e manter aberta a porta da minha casa. Não me esqueças.
Não te esquecerei, respondeu Hoshi e dobrou os tecidos magnificamente pintados e tingidos e voltou a guardá-los no cesto de vime. Depois chamou o cão, abraçou Haru e colocou junto do coração o pássaro de seda.
Gélida era a noite mas nos olhos do homem liam-se as estrelas.

2 Responses so far.

  1. .

    .

    . são destes contos que espero encontrar sempre disponíveis numa prateleira de qualquer livraria . que preze o dom . e o tom .

    .

    .

  2. No velho Palácio, o Imperador contemplava as derradeiras nuvens do inverno, quando, já ao longe, a primavera soava.
    Mas que primavera seria, naquela dinastia que tantas já contara?...

 
 

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