domingo, 26 de maio de 2013

conto longo feito de partículas

Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas

A voracidade das lagartas é atroz. Se é folha, tornam-se folha, se é fruto transfiguram-se em polpa e cor. Avançam em visco e rastejo mas se pisadas são ranho.
O senhor da sapataria perguntava, quer a caixa ou um saco? A mãe dizia, saco, eu respondia, caixa, para os bichos da seda. As amoreiras já eram árvores em vias de extinção. Andávamos quilómetros até à quinta dos gafanhotos, puxávamos a corda e o sino tocava. Descansávamos então sentados na berma da estrada, porque o caseiro era coxo e levava muito tempo para chegar da horta ao portão. O seu nome era Serafim, mas as pessoas diziam, Serafim o coxo. Hoje diríamos o senhor Serafim, o que tem um defeito numa perna. Não gostaríamos mais dele do que então gostávamos, seríamos apenas mais corretos. A correção pode ser também um enorme defeito, porque sendo falsa, é só por si uma imperfeição. A mim chamavam-me espirra-canivetes por ser alta e magra, o que é incorreto, pois esta expressão significa uma pessoa irritadiça, nervosa, coisa que nunca fui. As poucas vezes que andei à bulha fi-lo de uma forma perfeitamente calma, fria e distante. Bati para defender alguém e quando me batiam, caía sempre, porque tinha peso a menos.
A mais leve pesa zero vírgula três gramas e a mais veloz pode percorrer mil e quinhentos quilómetros no sentido sul-norte e passar desapercebida. As mais coloridas são diurnas, sofrem o stresse da competição, têm de ser as melhores, as mais belas, as únicas. As noturnas pacificam-se, dispensam o brilhantismo das cores, atraem-se, desenvolvem os outros sentidos e assim se perpetuam.
Serafim deixava-nos subir às amoreiras e apanhar apenas as folhas maiores. As mais tenras e pequenas tinham de ser protegidas para atingirem a maturidade. Depois dos sacos cheios, o ritual repetia-se, Serafim chamava-nos para debaixo da latada e colocava sobre a mesa de madeira um enorme melão. Com a sua faca afiada cortava as pontas, em redondo, a seguir abria-o no sentido do comprimento, retirava as sementes para um balde de lata e dividia connosco as fatias sumarentas. O sumo doce, ligeiramente picante, escorria-nos pelo queixo e matava a sede e a fome de merendar. Lanchar era a fala das cidades, onde jamais se encontrariam melões ligeiramente picantes e alaranjados.
As asas são formadas por escamas. Seriam dorso de peixe, barbatana. A longevidade de um ser mede-se pela intensidade da sua vida e um mês pode ser eterno. A Monarca vive nove meses, quatro fases de vida e só se alimenta em duas delas.
A pele dos bichos-da-seda era suave e macia. Devorar era o seu objetivo e a sua cegueira confundia-me. O cheiro a cartão da caixa misturava-se com o cheiro das folhas de amoreira, dos ovos, dos casulos, das borboletas a acasalar. Nauseava-me. Andei quilómetros, subi à amoreira e larguei os bichos e as folhas e a caixa dos sapatos.
Um dia somos as partículas de deus.
 
 

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