domingo, 17 de novembro de 2013

no meio de um lago calmo



Era uma vez um homem que tinha duas filhas. A mais nova chamava-se Formiga e a mais velha, Lua. Habitavam uma velha casa de dois pisos virada para o mar e lá atrás a aldeia, a escola e o templo.
Eram muito ricos. Possuíam um barco a remos, uma cana de pesca, três mudas de roupa, dois livros de poesia, uma faca afiada e um cão. Quando acordavam de manhã cedo Lua fazia chá e barrava de mel o pão, a irmã abria as janelas de madeira, sacudia as mantas e o pó dos tapetes e colocava copos de água em todas as divisões e em cada copo, um lírio. Depois saíam os três e o cão.
O pai trabalhava para um senhor pobre e era os olhos que ele não tinha. Lia-lhe as cartas, as contas, fazia-lhe a escrita e tomava conta da sua loja e dos seus bens. Este pagava-lhe em farinha, azeite, amêndoas, mel e tecidos e deixava-o ler todos os livros da sua biblioteca na condição de o fazer em voz alta para que ele pudesse ouvir e assim lendo, sabiam os dois de cor os contos inventados e as histórias verdadeiras dos astros, das ciências e das químicas.
O cão seguia as raparigas e ficava à porta da escola até à hora da saída e as crianças sentiam-se tranquilas porque manso era o cão, mas virava fera bravia se pressentisse uma ameaça ou um perigo.
O templo tinha sido construído numa ilhota no meio de um lago calmo e não se sabia exatamente que deus celebrava. Era um lugar antigo, silencioso, isolado, misterioso. Onde cabiam todos os mistérios. Quem o procurava, sentava-se ou punha-se de joelhos e falava daquilo que não entendia ou preocupava ou fazia sofrer ou rir ou temer ou simplesmente buscava a tranquilidade e permanecia calado. Podiam lá ficar uns minutos, uma hora ou alguns dias e as respostas ouviam-se muito tempo depois e eram simples de reconhecer. Como na margem do lago existia só um barco, os visitantes do templo apenas se cruzavam, esperando pelo regresso de um, dando a vez a outro e por aí fora.
E novamente à tarde regressavam a casa os três, o pai e as filhas. O cão cansado de estar quieto, corria à frente deles a ladrar aos gatos e aos pássaros.
As raparigas falavam as duas ao mesmo tempo, a contar das letras e dos números e dos segredos, e o pai ria-se.
A mais velha era meiga, doce, delicada, tinha nascido em quarto minguante e a mãe a dormir dissera, lua e Lua ficara. A irmã era curiosa, inteligente, audaciosa. Tinha nascido pequenina e agitada e o pai acordado dissera, parece uma formiga e Formiga seria. Depois tinham ficado sozinhos os três e o sono da mãe. Dela guardaram as rendas que fazia, abertos e fechados como os corações das crianças antes de crescerem e não podiam viver uma sem a outra, a face de uma e a face da outra.
Nas noites de lua nova o pai contava-lhes os contos dos livros que sabia de cor e descascava laranjas com a faca afiada. Às vezes saíam à pesca das tainhas e dos robalos e nas noites de lua cheia recitava-lhes poesia. Com ele aprendiam a química das estrelas e um dia, sabiam, um dia partiriam as duas no barco de remos em busca do quarto crescente que decerto lhes faltaria.
Eram muito ricos. Possuíam um barco a remos, uma cana de pesca, três mudas de roupa, dois livros de poesia, uma faca afiada e um cão.
 
 

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