Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas
Quando nasceu, o céu coloriu-se de azul-marinho e por uns momentos dir-se-ia que a linha do horizonte se desvanecera e os habitantes da terra seriam peixes e que acabara de chegar alguém marcado com um sinal.
Quando nasceu, o céu coloriu-se de azul-marinho e por uns momentos dir-se-ia que a linha do horizonte se desvanecera e os habitantes da terra seriam peixes e que acabara de chegar alguém marcado com um sinal.
É
um bom presságio, disseram os homens que cultivavam os campos levantando a
cabeça e logo continuaram a cavar e a semear. Não se interrompeu o curso dos
ribeiros nem tão pouco se alterou o sentido do vento.
O
pai prometeu-lhe um cavalo branco e enquanto a mãe dormia, as mulheres da casa
riram-se e troçaram, imaginando-o tão pequeno montado num potente corcel.
Cresceu
manso e pacífico sem ter de enfrentar perigo algum, mas inquietava-se o pai que
sabia a fortaleza frágil, temia a cedência dos baluartes em forma de estrela e
as colheitas pouco abundantes.
Aos
oito anos o cavalo era de sela, baixo como ele, que assim aprendeu a trotar e a
galopar.
Aos
dez, o cavalo era alazão e montava-o sem sela nem freio, sussurrando-lhe
palavras doces, como doces os rebuçados de melaço que lhe enchiam os bolsos,
recompensando aquele que se deixava cativar. O desejo que as pernas lhe
crescessem fortes e saudáveis era tão grande, que todas as manhãs se levantava
ainda todos dormiam. Nem servos, nem senhor davam por isso e o rapaz corria
como um potro selvagem pelos carreiros, os campos de centeio, à volta das
árvores do pomar, subia aos torreões onde uma eterna bruma lhe fazia companhia.
Das
armas defensivas preferia o arco. Ágil e o olhar certeiro, mas incapaz de
atirar a uma gazela ou sequer um urso e o pai lançava-lhe um grito.
-
Como poderás defender esta cidadela e a paz que nela reina, se alguém nos
atacar?
O
rapaz não sabia responder. Contudo, não se inquietava e na manhã em que completou
dezasseis anos o pai deu-lhe um cavalo branco, porque aquilo que se promete
deve ser cumprido, sob pena de descrédito e mágoa.
Foi
tanto o brilho que lhe sobejou nos olhos, que as lamparinas se apagaram nos
corredores e nos salões, nas cozinhas e nos quartos, claro como se fosse dia.
Assaram dois bois, o vinho correu nos jarros e nos copos e de todos os cantos
da fortaleza chegaram os convidados, dançaram e cantaram e pasmaram perante a
beleza de um cavalo assim.
O
rapaz cresceu ainda mais do que as suas pernas, enfeitiçou o cavalo branco e os
dois eram a mesma voz que sussurrava desígnios na aurora dos dias. Ousaram até
sair das muralhas protetoras, chegaram ao mar e aos portos de pesca e num campo
onde pousavam já as folhas vermelhas de um fim de tarde, encontraram os bandos
de cavalos negros como breu, que se diziam valentes e com fama de invencíveis.
Depois
vieram tempos duros. Por mais que os homens trabalhassem, os celeiros
permaneciam quase vazios, cada pão dividia-se por dois e cada dois, por quatro
e alguns murmuravam:
-
Se vierem os nossos inimigos, de que nos vale um cavaleiro e um cavalo, se o
cavaleiro é tão manso que não ousa atirar a matar e o cavalo é apenas belo e
branco?
O
rapaz fechava-se a estas vozes vãs e todos os dias patrulhava a muralha para cá
e para lá e os campos de centeio, os pomares e as hortas, certo de que um dia
teria de enfrentar o medo.
Quando
os viu muito ao longe, não se sobressaltou, não gritou, não acendeu fogueiras,
não deixou cair um lamento. Segredou longamente ao ouvido do cavalo branco, que
ouvindo batia com o casco dianteiro no chão em sinal de assentimento e partiu à
desfilada, virando apenas uma vez a cabeça para trás, as crinas espantadas ao
vento.
Eram
milhares e armados, de espadas, arcos, setas, facas dentadas, lanças e venenos.
O ruído que faziam assemelhava-se a uma tempestade seca, à fúria cruel dos
deuses. Mas quanto mais se aproximavam, menos viam e no lugar onde pensavam
existir a cidadela, vislumbravam apenas uma escuridão cerrada como breu, onde
nem um simples malmequer se abriria.
-
Fomos enganados. Aqui existem poços fundos e negros e do nada, nada se pode
roubar. E retiraram-se, acabrunhados, sujos e feios.
E só quando os pressentiram
muito longe, desarmados e derrotados, os cavalos negros como breu relincharam e
gritou de alegria o rapaz e empinou-se o cavalo branco, deixando a descoberto a
cidadela que protegiam.