domingo, 5 de novembro de 2017

conto antigo

Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas

Os mais velhos dos muito velhos recordavam-se ainda do grande fogo, não porque tivesse sido maior do que os outros que tinham sofrido, mas porque trouxera consigo um sinal de mudança.
A trovoada rebentara, súbita, forte, seca, desapiedada dos homens, vingativa para com as bestas. Sobre as cabeças há pouco ainda adormecidas, inquietas agora, o intervalo entre o trovão e o relâmpago era nulo e num presságio de desgraça, a eletricidade dos elementos colou-se-lhes à pele e da pele ao medo e do medo ao choro dos recém-nascidos e nos palheiros de pedra cobertos de colmo o fogo ateou, inflamou o que estava apenas entorpecido. A palha dos colchões e das almofadas, as arcas da roupa branca, a mesa da cozinha, o armário dos pratos. O azeite das candeias, as velas de todos os santos. A água dos poços fervia, os cães uivaram três noites, porque o fumo e a cinza não lhes permitiu que se apercebessem do dia e na face esquerda de todos os meninos apareceu uma marca desenhada a quente, a cicatriz da desolação e perguntaram-se, porque é que nos aconteceu isto?
Muitos de entre eles morreram para salvarem quase nada, um livro, um berço, um tambor, um coelho branco, uma ave, um poema de amor.
Na manhã do quinto dia, o desenho das lágrimas vincado nas maçãs do rosto, uma mulher que embalava um sonho, cantou, os homens disseram, endoidou, e a cicatriz na face das crianças começou a desvanecer-se, a purificar-se.
E foram elas que iniciaram a reconstrução. Procuraram as pedras mais leves, inseriram-nas no intervalo dos blocos maiores, taparam os buracos, ergueram paredes e construíram uma pequena torre no cimo da qual hastearam troncos de árvore queimados porque panos não havia.
Foi o princípio da cidadela, da fortaleza que os protegeria das agressões exteriores, porque das que surgem de dentro nunca as saberiam explicar.
A partir dos vértices de um triângulo equilátero, dois virados para o mar o terceiro apontando a terra, construíram pesados muros de pedra ligados por baluartes em forma de estrela. Preservaram as cisternas com tetos abobadados para que a água fosse pura, ergueram celeiros e armazéns e reconstruiram o castelo. Os campos voltaram a ser cultivados, a cinza fertilizou os pessegueiros e as amendoeiras e nas figueiras eram doces os figos lampos.
À volta da cidadela e em todo o seu limite escavaram um fosso, na inutilidade perfeita de um ato que impedindo a entrada de quem agride, reduz a possibilidade de se poder sair.
Pagaram pesados tributos aos senhores de outros reinos, mas não se deixaram abater na inocente intuição de que não existem castigos divinos, mas uma conjugação de elementos com os quais se escreve o destino. Fundiram o ouro e as joias, desnecessários perante o brilho nos olhos das raparigas, nos fios de luar pousados na cabeça dos velhos, nos anelados cabelos das crianças brincos de princesa quando adormecem ao colo do pai.
Foram prósperos os tempos que se seguiram, duas gerações nasceram e outras duas morreram e o dia do grande fogo era sempre celebrado. Hasteavam as bandeiras nas janelas do paço relembrando os meninos da pequena torre, abriam os pesados portões e davam brilho às fechaduras. Vinham malabaristas, saltimbancos e outros artistas, serpentes, águias e cavalos amestrados que depois fugiam num anseio de liberdade e vento.
E os mais velhos dos mais velhos não dormiam e vigilantes ao som das tempestades, continuavam a ouvir a voz da mulher que cantava a noite ardida, parada no tempo à espera do jovem que ela amava antes de o fogo consumir a sua vida.
Muitos outros homens e mulheres se revezaram na construção desta história singular e coletiva, porque uma cidadela é apenas tão somente um coração que pulsa, lançando ou apanhando pedras, vermelho como os vermelhos panos que enfeitam as janelas de um paço, dois passos. 
Esta é a crónica do livro das crónicas que me foi dado ler e recontar. 

One Response so far.

  1. Conto antigo
    repetido
    heroico? Sim, um pouco
    A seguir, conta-me outro
    outro conto
    deste povo
    se possível da construção
    (é que não só da reconstrução
    se ergue a História)

 
 

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