Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas
Os mais velhos dos muito velhos recordavam-se ainda do grande fogo, não porque tivesse sido maior do que os outros que tinham sofrido, mas porque trouxera consigo um sinal de mudança.
Os mais velhos dos muito velhos recordavam-se ainda do grande fogo, não porque tivesse sido maior do que os outros que tinham sofrido, mas porque trouxera consigo um sinal de mudança.
A
trovoada rebentara, súbita, forte, seca, desapiedada dos homens, vingativa para
com as bestas. Sobre as cabeças há pouco ainda adormecidas, inquietas agora, o
intervalo entre o trovão e o relâmpago era nulo e num presságio de desgraça, a
eletricidade dos elementos colou-se-lhes à pele e da pele ao medo e do medo ao
choro dos recém-nascidos e nos palheiros de pedra cobertos de colmo o fogo
ateou, inflamou o que estava apenas entorpecido. A palha dos colchões e das
almofadas, as arcas da roupa branca, a mesa da cozinha, o armário dos pratos. O
azeite das candeias, as velas de todos os santos. A água dos poços fervia, os
cães uivaram três noites, porque o fumo e a cinza não lhes permitiu que se
apercebessem do dia e na face esquerda de todos os meninos apareceu uma marca
desenhada a quente, a cicatriz da desolação e perguntaram-se, porque é que nos
aconteceu isto?
Muitos
de entre eles morreram para salvarem quase nada, um livro, um berço, um tambor,
um coelho branco, uma ave, um poema de amor.
Na
manhã do quinto dia, o desenho das lágrimas vincado nas maçãs do rosto, uma
mulher que embalava um sonho, cantou, os homens disseram, endoidou, e a
cicatriz na face das crianças começou a desvanecer-se, a purificar-se.
E
foram elas que iniciaram a reconstrução. Procuraram as pedras mais leves,
inseriram-nas no intervalo dos blocos maiores, taparam os buracos, ergueram
paredes e construíram uma pequena torre no cimo da qual hastearam troncos de
árvore queimados porque panos não havia.
Foi
o princípio da cidadela, da fortaleza que os protegeria das agressões
exteriores, porque das que surgem de dentro nunca as saberiam explicar.
A
partir dos vértices de um triângulo equilátero, dois virados para o mar o
terceiro apontando a terra, construíram pesados muros de pedra ligados por
baluartes em forma de estrela. Preservaram as cisternas com tetos abobadados
para que a água fosse pura, ergueram celeiros e armazéns e reconstruiram o
castelo. Os campos voltaram a ser cultivados, a cinza fertilizou os
pessegueiros e as amendoeiras e nas figueiras eram doces os figos lampos.
À
volta da cidadela e em todo o seu limite escavaram um fosso, na inutilidade
perfeita de um ato que impedindo a entrada de quem agride, reduz a
possibilidade de se poder sair.
Pagaram
pesados tributos aos senhores de outros reinos, mas não se deixaram abater na
inocente intuição de que não existem castigos divinos, mas uma conjugação de
elementos com os quais se escreve o destino. Fundiram o ouro e as joias,
desnecessários perante o brilho nos olhos das raparigas, nos fios de luar
pousados na cabeça dos velhos, nos anelados cabelos das crianças brincos de
princesa quando adormecem ao colo do pai.
Foram
prósperos os tempos que se seguiram, duas gerações nasceram e outras duas
morreram e o dia do grande fogo era sempre celebrado. Hasteavam as bandeiras
nas janelas do paço relembrando os meninos da pequena torre, abriam os pesados
portões e davam brilho às fechaduras. Vinham malabaristas, saltimbancos e
outros artistas, serpentes, águias e cavalos amestrados que depois fugiam num
anseio de liberdade e vento.
E
os mais velhos dos mais velhos não dormiam e vigilantes ao som das tempestades,
continuavam a ouvir a voz da mulher que cantava a noite ardida, parada no tempo
à espera do jovem que ela amava antes de o fogo consumir a sua vida.
Muitos
outros homens e mulheres se revezaram na construção desta história singular e
coletiva, porque uma cidadela é apenas tão somente um coração que pulsa,
lançando ou apanhando pedras, vermelho como os vermelhos panos que enfeitam as
janelas de um paço, dois passos.
Esta
é a crónica do livro das crónicas que me foi dado ler e recontar.
Conto antigo
repetido
heroico? Sim, um pouco
A seguir, conta-me outro
outro conto
deste povo
se possível da construção
(é que não só da reconstrução
se ergue a História)